quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

APENAS UM FILME

Foi apenas um filme, falava de morte e de vida, esta bruxa ou fada que nos carrega pela mão nos fazendo rir ou chorar, brincar ou pecar, amar e nem tanto. Isso tudo sem pedir licença e sem aviso prévio. Mas foi lindo, suave e leve como não dá para imaginar num filme deste teor.
Maria Clara saiu do cinema rindo sozinha, meio sem ver nada, ou quem sabe vendo mais do que poderia um dia imaginar ver. Não se incomodou com o calor sufocante da rua como não tinha se incomodado com o ar condicionado enregelante do shopping.
Fora uma noite surpreendente, isto por que, por traumas passados odiava ir ao cinema sozinha, aliás como odiava qualquer coisa sozinha e agora não mais, nem se dera conta que fazia quase tudo acompanhada dela mesma e isso não perturbava, pelo contrário, abria espaço para ser cada vez mais ela mesma. Ninguém para implicar com restaurante onde comera degustando cada pedaço do wraps acompanhado daquela fantástica coca zero com gelo e limão. Caminhara por entre as lojas, shopping ela também odiava, achando bom o colorido caótico das vitrines misturadas e sob a luz branca e constante.
Fazia tempo que a leveza não a pegava assim desprevenida, deixando-a sem nenhuma resistência para se sentir bem. Não se pusera a cantarolar como é lugar comum nas novelas, tampouco endoidara os transeuntes com sorrisos sem quê nem por que. Nem ficara boba cumprimentando as pessoas e distribuindo amendoim. Quem a visse não desconfiaria de seu estado de espírito. Continuava senhora pelo lado de fora, apenas perturbava um pouco o vestido cheio de cores e a postura sem idade. Perturbava os bobos da corte que anseiam agradar ao rei de plantão e estipulam comportamentos adequados e outros fora de quadro, com isso enquadrando todo mundo num estereotipado bem longe da realidade.
O filme despertara não sei o que, uma mágica esquecida que lhe dava a certeza de poder tocar o pote no fim do arco-íris onde as moedas de ouro nem de ouro eram, mas de sorrisos e carícias compridas como nunca tivera. E assim acreditou que João ou José, ou o sem nome caminhava ao seu encontro com chapéu de plumas.
Não se espantou ao ver o homem fazer mesura à sua frente e tirar o chapéu emplumado num gesto mais cabível no reino da Dinamarca. Vestia calças bufantes de veludo e a camisa branca tinha detalhes de renda com uma vistosa gravata de laço em azul profundo. Retribuiu o cumprimento, dobrando um pouco a perna e arrebanhado as saias de cetim numa proeza a lá 1500.
Logo se deram os braços e para escândalo geral dançaram uma valsinha suave como a música de Chico Buarque, ou talvez não fosse dele? Não sabe como as luzes diminuíram e um tom alilazado cobriu de sensualidade o espaço em que estavam deixando os demais de fora e gelados de bom comportamento.
Não pensou nem por um momento que fosse alucinação ou toque de mágica, se deixou levar pelo desaviso, ou descabido como se tudo estivesse dentro da maior normalidade e que Miguel era mesmo verdadeiro ao seu lado apesar do cheiro de pizza que exalava como um bom e plausível homem do século XXI. A peruca de cachos e bucles encobriam os cabelos levemente grisalhos apesar do tempo que já andara por eles o que era absolutamente normal na corte francesa de onde surgira. Inglês não era, não tinha aquele nariz de quem sente mal odor em todas as coisas e tampouco norueguês ou sueco por que a fala era em bom português brasileiro, marcada por algumas gírias e alguns palavrões apropriados, nenhum deles dirigido a ela. Para ela só tinha minha deusa, ou minha princesa e era assim mesmo que se sentia, por menos não deixaria nesta hora de tão pouco escândalo e tanta seda.
Saiu à rua rindo disso tudo e sem entender como aquele filme gostoso que assistira apertada entre gente desconhecida e precisando cuidar para não descansar o braço em cima de braço alheio, pusera este tique surreal em seus olhos e uma fascinação dentro do peito.
Já era tarde e estava sem carro, emprestado para o filho, nem ligou de esperar o ônibus e ouvir o reclame das moças do shopping cansadas do trabalho e loucas para chegar em casa fugidas da matéria plástica do shopping que aguentavam todos os dias com um sorriso também de plástico.
Até fumou um cigarro para encompridar a sensação de eminente encontro com o príncipe encantado ou nem tanto que, com certeza, aconteceria ali na esquina apesar do pipoqueiro não deixar muita margem a encontros românticos em meio a cheiro de manteiga e chocolate quente de milho estourado.
Não lembrava o nome da Bela Adormecida pelo qual certamente mudaria o seu, mas estava certa que alguma coisa bela acordara nela nesta noite que não é de filme, mas feita da mais pura vontade.
Se deu conta de repente que ontem a noite era de lua cheia o que a pusera na janela a espiar e para seu assombro que nunca via, uma estrela riscou o céu e nem era estrela de verdade, mas um meteoro ou meteorito, o tamanho não importava, só importava que fez aquele pedido bem do jeito que tudo acontecera hoje no faz de conta de sua alma.


Vana Comissoli

domingo, 23 de janeiro de 2011

A VISITANTE

Saiu do estado de letargia mantido durante os últimos três nyens. Alphonsus estava debruçado sobre ela, os olhos brilhantes de euforia. Ajudou-a a levantar e, com um gesto rápido, convidou-a a observar.
O grande visor abriu-se. Boiando no intenso negror estava o planeta azul imerso em sua fantasiosa harmonia, ainda assim belo e convidativo. Impossível deixar de sentir sua atração.
― É Gaia!
― É linda!
Uma emoção forte e primitiva tomou conta de Astene. Num segundo, milhares de vidas passaram por seus sensores e uma palavra estranha, sonora, tomou forma: Saudades. Virou-se para o companheiro perguntando:
― O que é saudades?
Alphonsus arregalou os olhos galácticos e profundos numa negação surpresa. Apertou um botão sobre a mesa de informações, uma tela se iluminou e desenhou em caracteres angulosos:
“Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas dis-tantes ou extintas acompanhadas do desejo de tornar a vê-las.”
Uma imagem desconhecida, ou guardada no fundo da psique, nebulosa, veio à mente de Astene, com ela a nostalgia suave daquilo que se deseja novamente, já tocado e perdido.
A nave pousou com serenidade, tudo funcionava a contento.
Não foi a primeira a desembarcar, havia hierarquia, ela era apenas uma estudiosa aplicada que recebera como prêmio, a oportunidade de acompanhar a expedição.
A terra era verde e selvagem. Um fogo de vida e indisciplina brotava numa inquietante magnitude. Cacto vicejante, pleno de seiva alimentadora, para quem saiba escolher, senão... A morte.
Pequenos seres escuros e sorridentes os recepcionaram em festa. Todos se incorporaram à beatitude do momento. Apenas Astene continha dentro do peito um terror mágico. Uma premonição. Tentava fechar os olhos oblíquos para que não pudessem ler através deles o desvario e a ansiedade, tão desconectados com a rígida disciplina aprendida.
Escreveu em seu diário de experiências:
“Sou Astene, faço minha primeira missão, pensei encontrar mundos externos a serem desbravados, catalogados e transmitidos. Encontro o fervilhar de meu sangue e a impossibilidade de reportar-me aos tranqüilos sítios da meditação, como se tudo não passasse de uma viagem para dentro de mim. Perco minhas referências e percebo que... Não é possível que eu tenha sonhado. Sei de onde vim e onde estou. Não há psique forte assim, as coisas estão realmente acontecendo. Não é alucinação".
Tudo foi muito rápido. O reconhecimento da área, o encontro camuflado com os habitantes. A serenidade sendo retomada e a sensação de iminência se diluindo, até que todo sentimento parecesse um pesadelo.
“Hoje faremos contato direto. Estejam equilibrados e protegidos das violen-tas ondas emocionais que os terráqueos transmitem.” O instrutor foi incisivo en-quanto lançava olhares perscrutadores, nos punha transparentes. Abaixei-me para fechar a bota absolutamente composta.
Chegamos a uma sala apertada, as paredes oprimiam e eram tão densas que mal e mal podíamos vislumbrar o céu através delas. Reunidos em torno de mesa rude, ainda de madeira, encontramos seis terráqueos absorvidos em visões infantis e diluídas. Brincavam com suas energias tentando despertá-las e manterem-se organizados com elas. Volta e meia um deslizava e perdia a suave luz azul alaranjada.
Eu demorei a enxergá-los como individualidade, ao restringir meu campo de percepção eu o vi.
As mãos rebeldes postas sobre o colo, a testa ampla revelando sua procedência evidente, os olhos inquietos sob as pálpebras cerradas. Imediatamente percebeu-me. O coração disparou e um arrepio de premonição rompeu a possibilidade de concentrar-se. Os lábios moveram-se no enunciar de nome perdido e logo a luz violácea da nostalgia se consolidou em torno dele.
Voltei muitas vezes, meus mestres sorriam, compreensivos. Afinal toquei as cordas afinadas de sua percepção e ele tornou-se brilho rosa-fogo. Entrei cambaleante, em seu chakra básico e perdi as referências e os parâmetros. Enlouqueci. Nossos corpos rolaram no etéreo, bruxos e resplandecentes.
Conheci a nudez e jatos róseos avermelhados fulgiam em minhas pernas. O ventre, incandescente, dominava minha vontade. Ele também nu, os braços abertos e o peito como cama macia. Consciente sobre o estado de nudez soube que era apenas parte neste momento.
Abraços, beijos, sempre e sempre mais internos, me levaram, devagar, por mundos nunca cavalgados. Não fui sozinha, ele me acompanhava.
Meu corpo, novamente na velha dimensão, foi buscado. Um contato lento. Um roçar de lábios, uma mão na pélvis, encostar de peitos e depois a expansão. Viajei nas galáxias, vi sóis e mares, reconheci-me no Universo e de dentro de mim um jorro de luz. Fiquei em paz e olhei meu companheiro de viagem, entendendo no seu cansaço o mesmo encontro. Descobri a outra parte, unindo-as senti o Todo.
A nave subiu sem ruído. Eu, no dorso da terra, observava meus irmãos que partiam. Encolhi-me. Perdia muito e ganhava outro tanto, fugi da consciência. Tor-nei-me parte que busca parte.
Vana Comis-soli

O HOMEM DE MEUS SONHOS

Tudo que desejo é encontrar um desses homens maduros e gostosos, que não desejam um instante, mas tantos passos quanto a harmonia permita.
Não desejo uma barriga tanquinho, sim uma barriga que saiba balançar alegremente de riso.
Não busco uma performance sexual, mas um beijo carinhoso depois.
Não quero que pinte os cabelos por que grisalho tem um charme artístico que me fascina.
Não anseio um homem que carregue um peitão siliconado pelo braço para provar que ainda seduz, quando na verdade foi seduzido pela ilusão de que um jovem amor pode voltar o relógio do tempo.
Quero um homem que saiba validar as estradas por onde andou, a sabedoria que absorveu e me fale, num jantarzinho em casa ou num restaurante discreto que toque MPB e tenha velas na mesa.
Quero a emoção que só um homem vivido sabe ter e que reconhece sua importância.
Quero um homem que não tenha vergonha de se emocionar numa passagem dolorosa de filme e que aperte minha mão neste momento como quem diz: pode chorar, eu entendo e também deixei correr meu sentimento pelos olhos.
Não quero um homem para me deixar de língua de fora na cama, mas que saiba prolongar um gozo só por nós vividos neste momento.
Não quero um homem que só saiba dizer adeus, mas que tenha aprendido a validade de um volto logo.
Quero um homem que já tenha lido poesia e ache lindo. Que conheça Fernando Pessoa e me deixe ler em voz alta, mesmo me achando um pouco criança e não rindo por eu ser isso mesmo.
Quero um homem que assista sem culpa ou cobrança o seu jogo de domingo e não faça polêmica por que saí com uma amiga já que não sou fissurada por futebol.
Quero este homem que conhece os caminhos das praças e não me dê dinheiro para eu comprar um presente, mas me traga este presente sem muita certeza se acertará.
Quero um homem que acredite em sonhos em todas as idades sabendo que eles mudam de teor e forma
Quero aquele se descobriu a delícia de ser naturalmente elegante e não seja fanático por Hugo Boss e nem pense que uma etiqueta possa lhe conferir charme.
Quero que seja espontâneo e não faça cara de mau para impressionar. Que sinta um pouco de medo já que é um sentimento comum a todos nós em alguns momentos.
Quero um homem que não me ate achando que voarei, mas tenha a certeza que é meu pouso.
Quero este cinqüentão, ou sessentão que sabe que o menino dentro dele é o mesmo de sempre.
Quero um homem que saiba rir alto e chorar também, que dê e saiba receber. Um homem que traga flores e não se aflija por que esqueceu.
Não precisa cozinhar, mas, se souber, não faça disso mais trunfo para dizer que se basta e é o cara.
Quero que leve café na cama e adore receber fingindo que está dormindo
Quero que se sinta maravilhoso de terno e gravata e não menos de bermuda e camiseta.
Quero um homem que saiba ficar calado e também fale animado quando tiver vontade.
Não quero um professor me ensinando o tempo todo, mas discípulo tanto quanto eu.
Que dirija bem e não se ache o Ayrton Sena, que não diga que mulher é terrível na direção quando eu der alguma rateada que provavelmente ele também já deu
Quero um homem com agá maiúsculo e não um boneco estereotipado pela novela das oito.
Quero enfim, um homem que já tenha aprendido que a vida é preciosa em qualquer idade e que todas elas são tempo de amor.