quarta-feira, 26 de outubro de 2011

FILHOS DO PODER SUPERIOR

Aos parceiros da UDQ na lembrança
amigos, irmãos, camaradas
para sempre.

Patrick, André, Astréia e Míriam.
Conhecemo-nos aqui nessa casualidade imposta. Prisão disfarçada.
Somos adictos internados, cada um na sua, numa clínica para dependentes químicos.
Os dias se arrastam nos grupos terapêuticos, sessões com psiquiatras, seminários explicativos (prá lá de chatos), filmes patrolando nossa adicção.
Temos pela frente trinta dias iguais, convivendo numa panela de macarrão que cozinhou demais. Mole e emaranhado. Um barulho ensurdecedor dentro da cabeça. Noites fritando na cama até chegar o entorpecimento sonambúlico dos remédios forçando a desligarmo-nos do mundo.
Muitos momentos, horas ociosas. Fumamos loucamente. Não temos bebida, nem droga, nenhum embalo. Os cigarros como único escape, uma chaminé para os pensamentos esburacados.
Uma constante charada martelando sem resposta: Quem sou eu? Quem sou eu? Um cogumelo ou um elefante branco? Somos um pouco de tudo, até da interrogação. Tentando sair de um buraco negro e fundo que nós mesmos cavamos.
Cogumelos tentando se proteger com suas copas da chuva ácida, presos nas raízes que sobraram da gangrena de nossas desgraças.
Elefantes brancos no espelho dos olhos de quem nos observa.
Um monte de retalhos a serem costurados para, afinal, nos mostrarem o que somos e a que viemos.
Entramos esquivos, meio chapados ainda, meio bêbados. Estômago embrulhado, o medo nos olhos, a solidão na alma e a desconfiança como escudo. Alguns dão o último “teco”, a última fumada da pedra, a última cheirada, no banheiro da recepção, enquanto esperam a triagem. Só os alcoólicos não fazem isso: impossível esconder uma garrafa de vodka no rabo.
Logo estarão nus e se agachando para ver se não trazem nas entranhas algum suspiro de cocaína, crack ou maconha.
Arrancados de nossas referências, por vontade própria alguns, outros a fórceps. Pouco convencidos da lepra em que nossas vidas desembocaram.
Aos poucos, a exposição desnuda das terapias, nos mostra as afinidades dos desafins em tudo, menos com as drogas. Os pontos de toque e de choque em que esbarramos.
Encontramo-nos.
Patrick. Vinte e seis anos, cocainômano injetável. Lindo como Adônis, meio morto como Lázaro. Homo, bi e se pudesse, tri sexual. A sensibilidade jorrando pelos poros, pelas tatuagens, pelos piercings. Um espírito gritando, enquistado no desespero.
André. Ao passar pelas ruas, as pessoas se voltam: que cara de bom menino! Que translúcidos olhos azuis! Cabelos loiros, comportados. Suave e interrogador olhar. A inquietação enchendo sua boca de chocolate, balas e perguntas. Voraz, incerto, inseguro. A cocaína cheirada no escondido da madrugada, do filho e da mulher a quem se atracava com toda a força do coração torcido. Muitas internações, esta sua última esperança. Haverá a última? Ou será a última antes da próxima?
Astréia. Menina levada, quase criança. Estapeando o mundo com a raiva nos olhos turquesa, na aparência mais do que desleixada, nos palavrões que saúdam suas falas. Na homossexualidade escarrada na cara dos certinhos e estúpidos, no seu conceito. Um ET sem saber de que planeta caíra. Perdidaça, jurando que sabia tudo. Somelier de todas as drogas. Uma expert.
E eu. Mírian. Atravessada pelo álcool depois de ter sido atingida por um avião batendo nas torres gêmeas. Família, filhos, trabalho. Tédio aparentemente normal. Torcida igual pepino para se tornar o que jamais fora. Deixando-se domar por medo do mundo grande e ameaçador. De solidão já tinha prenhe a infância irreversível. Algumas fugas guerreiras para manter a identidade, mas que já prenunciavam a válvula de escape da vodka. Um barco desgovernado procurando bússola.
Quatro vidas, quatro desencontros, quatro carências absurdas.
Na encheção das terapias ou nas dores da cura, em meio às conversas sérias, mineradoras, a exaustão de lapidar-se.
Foi simples assim.
O fumódrofo mergulhado na fumaça dos incontáveis cigarros, os poros exalando nicotina, a boca feito cinzeiro.
Grupos reunidos no dominó, alguém sozinho num canto com olhos perdidos, um violão retinindo.
Nós quatro proprietários da mesa grande onde ninguém se atreve a chegar.
As palavras dos grupos de auto ajuda tilintando nos ouvidos:
“Acreditamos que um Poder Superior a nós mesmos pode devolver-nos o equilíbrio.” (Primeiro passo do A.A.)
“Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus na forma em que O concebemos.” (Terceiro passo do A.A.)
Poder Superior... Estrela longínqua no espaço sideral da adicção. Crença vazia de significados. Objeto de nossas orações desesperadas e jamais materializadas. Nada de milagre à vista. Só muita coragem e querer. Ponto de interrogação.
− Tive uma idéia espetacular! Não somos filhos do Poder Superior?
Eles me olharam.
− E daí? Grande merda. – retrucou Astréia.
− Ele existe. – Afirmou André convicto. Eu vi. No lustre de minha sala.
− No lustre... Ah, me poupe! Viajandão vê até Jesus Cristo descendo da cruz soltando fogos de artifício.
− Existe, mas não se importa. – vaticinou Patrick.
− Então vamos recriá-lo à nossa imagem e semelhança, conforme o concebemos. Não é isso que eles pregam?
A olhada de meus parceiros traz carradas de curiosidade. Alguma luz, eu acho.
− Vamos criar a Igreja dos Filhos do Poder Superior!
Uma lufada de ar baleiado. Fonte de inesperado desufoco. Brincadeira no meio do peso.
− Seremos os pastores.
− Isso dá grana, muita grana.
− Irmãos, ovelhas desgarradas, o Poder Superior abre seus braços sobre suas cabeças sofridas. Espera apenas a vossa aceitação. Materializem a entrega de suas almas, de suas vidas através da fé do dízimo. Doe e receba em dobro!
-- Em triplo! – Triplo é melhor. Pega bem.
Pastores precisam de nomes de impacto. Místicos. Força e fé.
− Patrick, serás Osiris, o deus egípcio julgador dos mortos, o que pesa os corações e portanto a validade da vida.
− André serás Thor, o deus nórdico. Representando a força da natureza, o trovão, fazendo justiça com seus raios, com o seu martelo.
− Astréia. Serás Perséfone, amada de Hades, deus das entranhas da terra e para lá a levou. Por pedido de sua mãe inconsolável volta para visitá-la e da alegria de Demeter, nasce a primavera. O renascimento. Renasceremos nas tuas mãos, pastora dos perdidos, dos abandonados.

Eu serei Kali. Kali tem um relacionamento ambíguo com o mundo. Por um lado destroe os espíritos malignos e estabelece a ordem. Entretanto também serve como representante das forças que ameaçam a ordem social e a estabilidade por sua embriaguez de sangue e subseqüente atividade frenética. A deusa da morte. Organizarei a mente dos desviados.

Já a mania tomava conta de nossos frágeis egos. O entusiasmo eleva as vozes.
Astréia brada:
--Roupas. Não podemos usar coisas comuns, banais. Nós somos os pastores, os fiéis devem nos temer e respeitar.
Era chegada na moda trash. Patrick transava jóias de prata, anéis, pulseiras.
− Branco, tem que ser branco. Pureza. A nossa pureza. – Baixa um pouco o tom. – Não descobrimos, mas existe.
Logo volta ao tom frenético:
− Com uma tremenda folha dourada no peito, a cor pode mudar de acordo com a graduação hierárquica. Dourado só para os fundadores.
− Folha de quê?
− Sou mais uma nota de dólar. Lembrar sempre o dízimo é fundamental. A gente vai precisar de iate para meditar no grande mar. – Esse é André, o prático da turma.
− Que dólar, que nada! O dízimo a gente berra no meio da colheita. Arranca os cabelos.
− Vou usar peruca, então. – Murcha Patrick.
− Tem que ser uma tremenda folha de maconha que é familiar a todos. – Andréia berra.
− Legal! Não podemos esquecer a desgraça que vivemos.
− Então precisaremos de avião para ir aos lugares sagrados: Colômbia, China, Afeganistão. Todos.
− Como assim?
− Produtores de coca, ópio, mescalina, haxixe, LSD...
− Sensacional!
A necessidade de um hino surge.
Astréia-Perséfone resolve a situação de empaque.
− Vamos usar a música do Paralamas do Sucesso, só mudamos a letra:

Tô segurando
Essa lanterna
Para os afogados
Sei que vou poder te salvar.

− Se é para pedir licença, a gente paga e usa a música toda:

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar

Há uma luz no túnel dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Eu estou na lanterna dos afogados
Eu estou te esperando
Vê se não vai demorar

Uma noite longa
Pr'uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mais ainda sei me virar

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

− As pias de água benta, de benzeção, devem resgatar a subjetividade. Por preferências, marcas indeléveis da individualidade, do eu soterrado dos fiéis: whiskey, vodka, cachaça e um licorzinho para arrematar.
− Bem, então as hóstias deverão ser de cocaína. – Berra André-Thor.
− E teremos confessionários privativos, onde os pecados serão dramatizados longe dos olhares críticos. Só na revivência poderão sentir o peso da injúria feita. – Profetiza Patrick-Osiris. – Cada um deve reviver sua droga de preferência. Penitência.
A cada risada os outros internos se aproximam. Novos companheiros já se abancam à mesa e logo são batizados com nomes para a nova vida.
A Igreja dos Filhos do Poder Superior cresce a galope. Dei-me conta da preponderância sobre o juízo que as drogas obtêm com facilidade. Elas seduzem. Qualquer caminho é rota de fuga do mundo que inverte valores e estarrece os mais sensíveis levando-os às rotas desenfreadas.
Ezequiel que a tudo assiste, aparentemente fechado em sua concha, isolado, grita:
− Panacas, vocês não estão criando nada! Não passam de crianças reproduzindo o que vêem. Irremediavelmente condicionados. Boiada de idiotas. Políticos, ladrões ou capachos: traficantes no poder das nações. A mentira maior do que a verdade e a manipulação é moeda corrente de livre trânsito.
Um suspiro tremente escapa de minha indignação:
− O quartel general está aqui dentro, mas o grosso da tropa está lá fora! O mundo está roto, a beleza enxovalhada e o ser humano virou ração para os bois gordos. Um trapo descartável.
Ezequiel se levanta:
− Fomos engolfados pela fraqueza. Entregamos nossas vidas de bandeja. Tentamos acertar errando. Tentamos sobreviver fugindo. Perdemos a guerra e nos tornamos presas fáceis, nos desumanizamos no imundo. Mergulhamos no mar estúpido da descartabilidade. Fomos invadidos, esquecemos de questionar e reivindicar o status de ser humano. Estúpidas e ruminantes vacas de presépio, onde na manjedoura vage a vulgarização dos sentidos. Em cada um de nós o mundo morre um pouco.
Silêncio total. Olhamo-nos perplexos. A consciência dói. É ferimento sem cura, estigma. O silêncio é uma mortalha.
A nova igreja aborta-se ao nascer. Jamais terá forças para driblar a igreja 666 que viceja pelos corredores do planeta.
Em vários cantos da Terra, em múltiplos idiomas, os crucificados elevam pensamentos enquanto são bombardeados pela mais mortífera artilharia que se tem notícia: a desesperança e a descrença que leva à desonra.
Alguém começa a cantar baixo, logo seguido por todos e o som aumenta, toma conta do espaço, das mentes:
“Vem, vamos embora
que esperar não é saber.
Quem sabe faz a hora
não espera acontecer.”

• De todos estes personagens reais apenas dois se mantém em recuperação. Alguns voltaram para a clínica, outros continuam absurdamente na ativa e algum está preso.
Os sobreviventes se engajaram em serviços beneficentes de auxílio aos dependentes na ativa e seus familiares. Os laços de irmandade jamais se desfizeram e embora distantes o contato é permanente e a felicidade partilhada a cada nova conquista de vida. Irmãos paridos na dor, irmãos unidos na recuperação.
Para sempre.

sábado, 22 de outubro de 2011

NE ME QUITTES PAS

Ne me quittes pas...
Não quero que sejas minha sombra
Nem eu a tua
Te quero luz fátua
Na distância próxima dos sentidos
Não quero viver à tua volta
Ou que vivas na minha
Quero a inteireza de estar presente
Na mente
Como forma viva
Incandescente
De sedução plena
Consciente
Permanente
E assim, totais
Sem metades
Sem partes
Inteiros em si mesmos
Dando-se e tomando
Sem pudores
Sem árduos amores
Simplesmente de mãos dadas
No infinito finito de nós dois
Absolutamente perfeito:
estar na mente, permanente,
inteiro, profundo, claro, real.
Façamos do encontro um romance
do instante uma fagulha de eternidade.
O resto é paisagem...
Vana Comissoli

URUBUSERVANDO

Uma sensação vaga, imprecisa, urubu adivinhando carniça pelo cheiro. Eu senti.
Ele era alto, moreno, de grandes e estarrecidos olhos negros. O cheiro de carniça estava soterrado sob um excitante Mont Blanc que devia custar quase, ou mais, do que um salário da plebe.
Eu sobrevoava os campos primaveris de minha fácil vida. Gostava de encantar, mais precisamente de seduzir, sem saber dos riscos servidos nos canapés de caviar com que me lambuzava nessa promessa de retornos jamais vindos.
Quando cheguei à festa o aroma me alcançou nos olhares famintos de minhas amigas, no ti ti ti que rapidamente foi confirmado ao enxergá-lo. Era ele, tive certeza. Vinha montado no cavalo branco e eu esperava seu beijo fingindo adormecida. Não era fingimento.
Envolvê-lo foi fácil, eu tinha todos os ingredientes necessários da receita de princesa. Flores, bombons, mimos... Princesas são tão bobas! Ouvem uma única melodia tocada em cravo secular onde a letra, canto-chão, repete: Felizes para sempre... Felizes para sempre...
Assim que pousei sobre ele a carniça exalou. Acontecia nas brincadeiras do amor. Amor, rosa vermelha, cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... branco, uísque, vodka, caipirinha caipira de cachaça, cálice... cálice,,, cálice. Copos... copos... copos... “Pai, afaste de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue”.
No princípio culpei o vizinho que fedia e todos sabíamos, depois meu nariz osfrésico. Pulei para o alerta, deixei rastros de perfume de todos os tipos: reportagens, livros, avisos. Efeitos dos perfumes daninhos. Meu príncipe amava o odor afrodisíaco, hipnotizante, acostumara-se e não via mais a diferença, ou se a via enamorara-se por ele para sempre, acostumara os sentidos e se encharcava cada vez mais. Amor antigo, bem mais antigo do que eu, a rival.
Por fim decidi que meu amor soberano o envolveria se eu o exercesse à exaustão. Desenvolvi aromas de carinho, entusiastas, chorosos, lamentosos, impediriam que ele se inebriasse do cheiro de desespero e infâmia.
Fomos deixando os duques e duquesas de lado, tinham começado a respirar fundo quando chegávamos, embora disfarçando, para logo em seguida passarem a usar máscaras protetoras descaradamente na cara.
O príncipe já era quase um sapo disforme e coaxava noites a dentro transformando meu sono de pós prazer numa vigília de temor constante, numa guerra ímpia e injusta como ouço no hino de minha terra. Não mostrava valor, constância nenhuma.
Eu tinha que desistir. O urubu em mim crocitava não. Dizia que carniça tinha lá seu encanto, seu prazer. Quem sabe encontraria vida sob as carnes sanguinolentas, embaixo da aparência pútrida das olheiras. Quem sabe eu...
Não, por mais que ele me mostrasse as delícias de aspirar o odor branco das nuvens eu não podia, não conseguiria me habituar a ele.
Urubus comem carne morta, mas não apreciam se transformar em pasto de seus iguais, exatamente para manterem a sua, linda e fresca, ingerem a repugnante refeição. Eu fazia isso? Era isso que eu era? E a princesa, o castelo, o cavalo branco? Onde?
Eu voava, planava sobre tudo, além das nuvens e não me vinha coragem de abandonar a paisagem ruandense de 1994. Era a isso que assemelhava minha visão: facões cortando corpos, sonhos, planos. Cortando e estripando meu príncipe.
Os amigos dele tomaram o lugar daqueles que escolhem melhor seus perfumes e eu planava sobre eles também, cada vez mais alto e durante mais tempo, era a maneira de acreditar horizontes.
O príncipe tomou banho, sentou-se todo príncipe branco com o perfume nas mãos, acreditei em renascimento como uma entrega ao santo da devoção. Havia incenso queimando. Orei a ele que era meu tudo, meu deus particular:
- É tão importante? Mais importante que eu que te amo tanto? Te dou minha vida e meu ar? – Não mais chorosa perguntei amassada, minha própria pele se desfazendo.
Ele jogou aquele olhar comprido e doloroso que sempre fisgava o perdão dentro de mim. Vi alguma coisa verde dentro dele, muito rápido e logo branqueou.
Ronaldo abaixou a cabeça extremamente concentrado, fechou suas cortinas estendendo-me meu aviso de demissão e cheirou a primeira das cinco carreiras enfileiradas como soldados mercenários.

AO MESTRE, COM CARINHO

“ Um conto é um corte na vida. O que houve antes, ou virá depois não importa. A vida seguirá, mas aquele segmento será a polarização imutável trazida pelo antes e deslizando para o depois. Estímulo e retorno. Apenas isso e isso é muito.
O conto é como a fotografia: um instante capturado. Um reflexo do ímpeto.
A novela como a pintura: leva tempo para se terminar o quadro, mas sempre será duas dimensões.
O romance como a escultura: olhamos de todos os ângulos e temos a figura completa. A quarta dimensão, pois ao físico e palpável é acrescentada a alma.”
Eu bebia as palavras de Jorge Medina há muito tempo, ou toda a vida. Eu caminhara pelo deserto da busca cega e quase já desesperançava quando o conheci. Até então escrever era um passatempo, um alívio das tensões. A forma como as palavras se agitariam ou se descansariam no papel não tinha significado algum até encontrá-lo.
“Para que este corte, esta foto, tenha significado é necessário um conflito, sem conflito não há conto. Podemos criar uma rosca de açúcar ou um espinheiro agudo. A densidade terá o tom que escolhermos. Um conflito denso agregará mais valores e mais emoção.”
Eu desenhava mulheres nuas em meu caderno de notas e via que os olhos de Jorge volta e meia espiavam. Percebia uma nesga de sorriso? Não sei, mas quando eu lia meus contos temáticos sim, ele ria. Baixava a cabeça. Fechava os olhos, era um auditivo, e ria. Às vezes abertamente e isso me deliciava.
Era inevitável desenhar furiosamente, eu era auditiva ativa, meus olhos precisavam estar distraídos, ou melhor, minhas irrequietas mãos, para que eu capta-se aquela fala mansa carregada de preciosidades que transformariam minha vida.

“Maria entrou no quarto cheia de culpa. Eu também era culpado.
(O ruído rápido e quase ininterrupto do teclado, era música aos ouvidos de Jorge Medina e as idéias quebravam as paredes do quarto pondo-o em vôo livre.)
Nem por um momento deixei de ver meu irmão entrando na igreja, os olhos prendendo as lágrimas. Era o dia de desposar Maria e mostrar seu troféu até que a morte os separasse. Aceitei ser padrinho e lá estava com a gravata me enforcando, minha cabeça girando em cima dos ombros, prestes a cair. O perfume da noiva me alcançava como se ela ainda estivesse em meus braços. Maria, deliciosa, suave, rosada, agitada, urgente na chorosa e lamurienta despedida da véspera.
(Jorge bateu o cigarro e abanou a fumaça quase palpável. Ficaria bom, este conto ficaria bom, pensou com o velho sentimento de dominar o mundo, as pessoas, através das palavras.)

Na primeira aula mandou que nos apresentasse como se fôssemos nosso colega da frente. Algum tempo depois entendi que estava reconhecendo nosso feeling. Para compor um personagem precisamos aprender a captar as pessoas à nossa volta, isso não significa inventar o que nos der na cabeça. É preciso manter a coerência mesmo que incoerente do personagem, seu perfil, seus pensamentos íntimos que não serão descritos, mas percebidos através de seus atos.
Adequar a linguagem aos acontecimentos.
Ação? Escreva numa linguagem rápida, quase sem tempo do leitor respirar, mas não o sufoque.
Dor? Use palavras trágicas, que chorem nas letras. Observe o som das vogais, seu crescente, também falam, ou desmaiam no decrescente.
Saudade? Estique as palavras, deixe que elas relembrem os momentos que se foram.
Ler onde não está escrito. O segredo do conto: o subliminar, magistralmente atingido por Machado de Assis, na Missa do Galo. Perseguido quase sangrentamente por todos os outros, estrela de difícil encontro.

“Maria encontrara meu irmão Osório como uma luz, uma salvação, natural que se encantasse e visse nele possibilidades de amor. Acho mesmo que o amava sinceramente. Afinal o amor é correspondência e preenchimento de necessidades, apesar de deliciarmo-nos enfeitando-o com a aura que sobrou do romantismo.
O que ela não contava era com a paixão, a louca, súbita e irreverente paixão. Como gostamos de nos apaixonar! Vemos apenas a paixão. Enganamo-nos dizendo que é um rosto, um olhar... Não é nada disso, é uma emoção sedutora tique taqueando dentro de nós, acelerando o sangue, tirando o sono, tornando-nos escravos de um tilintar de voz.
Maria respirava paixão e tentava se livrar desta droga casando-se com Osório por amor plácido e rotineiro. Nada de frenesi. Dia de primavera sem o calor cáustico e excitante do verão.
Não podemos impedir o céu de chover, a noite de chegar, a planta de florescer, mesmo que isso, momentaneamente faça o sol adormecer, o dia descansar, a planta fenecer. Maria descobriria em meus braços.
Eu voltara para o casamento de meu meio irmão tão diferente de mim: calmo, de passos certos, colocando tijolo a tijolo as paredes de sua vida. Eu fora agraciado com um mestrado em Lisboa e, mesmo sem deixar de lado a importância de meu objetivo, resolvi que era uma oportunidade imperdível para virar do avesso a velha Europa. Livre de pai, mãe, casa, meias lavadas...
Entrei fundo nas tascas portuguesas onde aprendi a gostar de cerveja importada, terminar de quebrar minhas grades e rir com sonoridade retumbante. Retumbante era o que guardava de minha terra deitada em leito que eu renegava.
Sentávamo-nos descabelados e aéreos nos bares de Lisboa a debochar da cidade florida. Jovens insustentos a falar do que imaginávamos saber. A mesada, sempre escassa, chegando de todos os cantos do mundo para que pudéssemos divagar nas nuvens de nossos baseados, encontrando profundidade nas vidas de nossos escritores favoritos.
Citávamos Pessoa como se ele estivesse a sustentar Mário de Sá Carneiro na mesa ao lado e a sentíamos paixão pelos corpos que Miguel Esteves Cardoso possuiu.
Lá assim era e eu aprendera a ser inconsequente, estrangeiro tudo pode.
Tanta diferença entre eu e Osório devia-se ao fato termos de mães diferentes. A minha era uma jovem senhora de bem com a vida e a dele, uma chata, presa no ante ontem. Nesta escolha a minha ganhou meu pai que se tornou um cara menos sisudo e mais disposto a tomar um pilequinho nos churrascos familiares. Quem saiu perdendo ou ganhando? Não tenho a menor idéia, o fato é que éramos diferentes, cada um ganhou e perdeu um pouco. Infelizmente os dois ganharam Maria.”
- Não posso me esquecer da verossimilhança amanhã, na aula, devo reforçar este aspecto importante dos personagens. Se os alunos listarem todas as características, começando pelas físicas e terminando nas psíquicas, entenderão melhor.
A economia de palavras. Quantas já apaguei! Economia, limpeza: chô quês sujos e repetitivos, chô pronomes desnecessários, chô linguagem poética numa prosa. A menos que se deseje falar de flor, passarinho e borboleta. Eu quero isso? Preciso ter certeza dessa resposta.

- As qualidades físicas devem retratar as psíquicas.
Anotei a informação e criei mil personagens diferentes a partir daí. Antes de dormir os nomeava, via seus movimentos nos sonhos e meus cadernos se encheram de desenhos com fisionomias feitas a facão, mas expressando sentimentos cortantes.
Estou louca ou Jorge Medina me olha mais do que aos outros?
- Vamos imaginar dois personagens. Nossos personagens. Paulo e Márcia. Listem ações que se desenrolarão para um e para outro. Listem os verbos determinantes dessas ações, as dele e as dela, vejam a convergência. Não permitam que idéias se atravessem, mantenham o foco!
Como gostaria de ser estenógrafa! Não perder nem a respiração entre as palavras. Se eu seguisse à risca seria uma boa escritora? Nem me atrevia a pensar em romance.
- O conto é o gênero mais complexo de todos, não há espaço para vacilo, minúcias, palavras que não sejam absolutamente necessárias.
Mudei de idéia sobre tudo.

“Não foi intencional. Ela saía do banho e eu entrava. Meio nua? Não vi nada, só os olhos flamejantes que me examinaram. Ainda não tínhamos nos encontrado, embora minha vinda estivesse anunciada. Estava nos preparativos da cerimônia quando joguei as malas no quarto de hóspedes, furioso. Tinham dado o meu, o meu, para aquelazinha que aportara de pára-quedas na minha casa.
Dois pontos, luz azul, arco voltaico: Maria e eu.
Depois aquela coisa besta de apresentação, jantar incômodo das pernas se tocando por acidente e os olhos irrequietos e prometedores. Eu a despia junto com a pele dos tomates, a comia no filé à parmegiana e lambia na sobremesa de sorvete.
Foi simples e sem culpa. Uma noite, que mal faria? Depois... Impossível para sempre. Não era o recado que meu corpo passava durante a marcha nupcial féretra.”

No dia seguinte a aula foi sobre neologismos. A capacidade de criar palavras, a sagacidade de colocá-las no texto e a profunda coragem de fazê-lo.
“O mestre neste campo minado foi João Guimarães Rosa. Levou suas obras ao instigante mundo, onde recria a língua e faz com que os leitores tentem decifrar a todo momento os seus “achados” semântico, morfológico, e, até mesmo, sintático ou morfossintático, como se a literatura não fosse apenas algo sério, mas também algo criativo, artístico e misterioso.
E a literatura não é mesmo algo sério, é brincadeira do intelecto, liberdade de sentir, recriar a vida numa performance que nos deixe de queixo caído.”
Féretra mereceu a aula.

“Entrei na cozinha cantarolando, sou da paz de manhã, gosto do sol, ele esteja no céu ou não. Sabia que a lua-de-mel tinha sido adiada pelas cinzas do vulcão chileno que teimava em colocar uma sensação de fim-de-mundo. Apocalipse day.
Teria que parecer como sempre e fazer de conta que não tivera ouvidos de cão para captar ruídos que desejava meus e de Maria. O desgraçado quarto de hóspedes era no sótão e eu não ouvia nada naquela casa antiga de paredes camufladora dos segredos de alcova.
Fiquei mudo. Pavor.
Estavam os quatro na cozinha. Meus pais com as pistolas tremendo nas mãos, apontando-me. A de minha mãe, com belo cabo de madrepérola, teimando em mirar o chão. Meu pai segurando com as duas mãos para esconder o tremor e Osório direto nos meio de meus olhos. O tiro seria imbatível.
Maria chorava balançando o corpo e a cara marcada por hematomas se ergueu ao meu bom dia fingido.”

Jorge escrevia tramas tempestuosas e paixões escaldantes. Era a densidade, dizia ele, enquanto eu o copiava e punha ainda mais ardência. Excitaria sua curiosidade ao ponto de ebulição que a minha estava? Seus livros eram ambrosia que me açucarava.
Paixão, aquela mesma que Orlando sentira por Maria. Eu não queria amor algum! Queria Jorge e suas palavras mágicas. Queria pulsar como os personagens. Eu: Ana Karenina, Lady Godiva, Madame Bovari. É querer muito? É só literatura, me convencia.
Jorge escrevendo, Jorge falando, Jorge lendo, Jorge beijando, Jorge me chamando, Jorge, Orlando... Orlando, Jorge...

“Maria, a Louca. Pela Graça de Deus, Rainha de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Pela Graça de Deus, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Nada disso! Pela graça de uma trepada sensacional, a maluca resolveu não fazer amor com o marido na noite de núpcias e, ainda por cima, apontou com todas as letras o infrator.”

Os temas, as formas, a linguagem... Aula a aula compondo a trama do que viria a ser eu.
“Sobre o tapete, ou duro piso, a gente
compõe de corpo a corpo a úmida trama.”
Drummond saberia que isto também é amor? Que pode haver paixão entre o escritor e a escrita? Que posso ter mil Jorges, ser bígama, fiel, santa e puta?
Hoje, na frente do teclado onde as palavras aparentemente surgem sem uma nesga sequer de meu mestre, eu o relembro e devo a ele mais um livro editado e a entrevista que me espera para falar sobre o conto. O conto que foi o fruto deste amor incondicional.

Final aberto? Final fechado?
Qual se adéqua mais ao tema proposto?
Vamos deixar assim, ainda não parei de escrever...

Vana Comissoli