domingo, 6 de maio de 2012

HISTÓRIAS DE MENESTRÉIS Uma dama em castelo de flores Chora no balcão por não ter amores Nenhum alaúde canta príncipe com sua espada Para receber seu favor Em troca de rosa dourada Seu lenço bordado com mimo e fitas Jaz inerte na espera angustiada Gentil cavaleiro ouve o silencioso chamado Erguido na noite incerta Penetra seu coração em linha reta Mas como ser pela dama ouvido? Sua casta de nobreza Vem pelas eras da gentileza Não é nobre, não tem flâmula Em seu brasão apenas água de rio Sinuosidade de serras Árvores de gigantes florestas Genealogia feita de campos e vales Orvalho da manhã e canto do rouxinol Na ansiedade cheia de arestas Lembra de sua arma predileta Com a qual ganhou liças Campeão juramentado Está salvo, pela poesia foi abençoado Grita versos, provoca rimas Colhe veludo nos ventos da imaginação Nas asas de fino pássaro Cole suas odes preferidas Irá para o peito de sua querida Como flecha que não fere Não faz sangue, é guarida No alto da torre encastelada Vê a dama o pássaro pousar E suave melodia se põe a cantar - “Senhora, juro pela santa lua que clareia de prata as belas frondes de todas estas árvores - Não jures pela lua, essa inconstante, que seu contorno circular altera todos os meses, porque não pareça que teu amor, também, é assim mudável. - Por que devo jurar? - Não jures nada, ou jura, se o quiseres, por ti mesmo, por tua nobre pessoa, que é o objeto de minha idolatria. Assim, te creio. - Já vais partir? O dia ainda está longe. Não foi a cotovia, mas apenas o rouxinol que cantou. - Foi a cotovia, não foi o rouxinol. O rouxinol canta de madrugada e a cotovia de manhã. Já é de manhã. - Não é dia ainda. Espera” A bela dama assim se enamora Sonhando Romeu enquanto como Julieta chora Haverá na curva da terra algo que possa deter Tão destemido cavaleiro? Nada há apenas o querer Em versos imortais será o amor sempre cantado Onde existir bela dama e cavaleiro apaixonado.

PÉ DE VENTO

Foi apenas um pé de vento, mais nada. Uma coisa que acontece todo dia. A gente lida com o todo dia o dia todo... Nada muda tudo é igual, mas... Pode dar um pé de vento. “Por aqui, por aqui”, dizia e eu não entendia por que entravam em meu jardim com a horrorosa estátua de peixinho que, certamente, cuspiria água. “Ponham ao lado da Branca de neve, cuidado com os anões”. Era um dia encardido, sem sol e sem chuva, esses malditos dias em que tudo que eu desejava era dormir e tentava cumprir a sina quando a barulheira no portão me obrigou a sair da cama quente e fofa. Já estavam pisoteando a grama quando consegui me vestir e enfrenta-los sem nem pentear os cabelos. - Uma Medusa! – O violador de casas alheias gritou exatamente isso quando me viu e fiquei três vezes mais furiosa. - Que traquitana é essa no meu jardim? - Sua encomenda, senhora, desculpa o atraso, sei que a entrega era para ontem, mas com toda aquela chuva não foi possível. Poderia ter entregado antes, mas seu pedido demorou a chegar. Fui em sua direção vociferando que não tinha comprado nada e o que estava pensando de mim? Tinha cara de quem põe Branca de Neve, anões e peixinhos cuspidores no meio das plantas tão cuidadosamente estéticas? E Medusa é... O sujeito tinha uma cara tão inocente que parou o xingamento pela metade, passou a mão nos cabelos no exato momento que um vento salvador chegou para empurrar as nuvens e levantar uma poeira fina que entrou pela garganta ajudando a disfarçar a agressão. - O senhor está enganado, não encomendei nada. - Eu sei... Fui eu que fiz a compra, mas não tenho jardim, então... Achei o seu tão bonito que resolvi colocar aqui. Tenho certeza que corresponderá às suas necessidades. - Tem alguma coisa errada. Não quero nada disso, não gosto de estátuas de jardim, só de plantas. E não alardeei necessidade alguma. - Tudo bem, não me incomodo, também gosto de plantas. O resto tenho certeza que aprovará quando receber. Mercedes ficou sem fala. Afinal o que estava acontecendo? O sujeito podia ter aparência ingênua, mas era um maluco. Tentou explicar, negar, sapatear, xingar e o cara ali na frente... Inabalável. Atirar as tais estatuetas no meio da rua não tinha jeito, pesavam demais. - Mas afinal, perguntou Mercedes cansada e rendida, o que o senhor deseja? - Um cafezinho, pode ser? E responder ao seu pedido. Grande número de pessoas fica inerte diante da perplexidade, com ela não foi diferente, quando deu por si estava escancarando a porta e dizendo “entre” com uma gentileza inusitada. Ficou logo sabendo que o nome dele era Jorge, aliás, um dos primeiros em sua lista de nomes infames, mesmo assim concluiu que combinava com o bigodinho sem cor em cima dos lábios vermelhos demais para um macho. Os cabelos cor de palha também não ajudavam em nada a figura, sem nem falar que era miúdo e não tinha aquele peitão despertador de suas mais escondidas virulências sexuais. - Está soando o Ângelus, disse suavemente três horas depois com o bolo devastado em cima da mesa, as xícaras de café e de chá esfriadas e abandonadas. “Estou louca, só consigo entender dessa maneira”, pensou quando fechava a porta delicadamente, daquele jeito de quem não deseja o afastamento. Quem sabe na última fresta batesse um pé de vento empurrando a porta e a ela para dentro de alguma coisa mágica. Lembrou-se do próprio olhar não vendo nada, fixo naquela vontade de que fada madrinha fosse verdade. Mas fora só um momento de escape, uma bobagem. As figuras coloridas e ridículas ficaram no jardim e Mercedes pensou no quanto os vizinhos estranhariam aquilo vindo dela que era tão metódica e racional. Sabia que deveria se insurgir, era o esperado, mas esta Branca de Neve não era tão “de doer” como as outras que já vira e tinha um olhar meigo. Meiguice era uma qualidade que considerava enjoativa e no entanto... Tinha que reconhecer que na Branca caía bem. Abaixou-se examinado as figuras quando a luz do dia ainda não se acendera totalmente, tivera uma noite de cão e mal dormira. Os sonhos falando de insanidades tórridas e perturbadoras feitas com o maluco que nem sabia onde morava, sequer se era real ou fantasma escapulido do outro mundo. Perto das três da tarde a campainha soou e ela teve um sobressalto: seria Jorge? Não era. Era o carteiro pedindo uma “forcinha” de fim de mês. Soqueou a decepção que se instalou no peito e caminhou duro em busca de um que fazer qualquer e urgente. Doida de vez, dizia-se de quando em quando e muito seguido, já que as feições do homem não saíam de sua cabeça e se esforçava para lembrar do cheiro dele. Foram cinco dias de penar, uma ansiedade invasiva instalada no peito e mil perguntas na cabeça. A Dona Maroca, que fazia jus ao nome, perguntando por cima do muro: - Mercedes, estás tão abatida... Até com olheiras. Estás doente? - Não. – respondeu com ponto final A vizinha não tinha muita intimidade com pontos finais colocados por outra pessoa e continuou um desfilar de doenças até que ela vomitou bem ali, no meio do canteiro de sempre vivas. - Eu disse! Estás doente! Aha! Logo vi. É a água, o ar, poluição, comida ruim... Preciso calar esta boca maldita, pensei desesperada e antes de me dar conta estava dizendo: - O Jorge virá me cuidar... Antes de se esmurrar deu volta rápido para dentro de casa enquanto a boca da mexeriqueira se abria desemparada de respostas e uma taquicardia relâmpago. Angina? Ele voltou, abriu o portão sabendo que Mercedes espiava pelas cortinas. Vinha cantarolando todo feliz com um maço de flores abrindo caminho. Foi logo a beijando na boca com língua e tudo, não dava para chamar aquilo de selinho. E como ela estava mesmo boquiaberta, não houve nenhuma dificuldade. Foi um romance tórrido, gritado, até esbofeteado. Cheio de palavras de paixão e desnudamentos quase no meio do jardim. Dona Maroca deixou de cumprimentar a vizinha desavergonhada embora esticasse um olho lacrimejante. A vizinhança toda se perguntava de onde teria saído aquele homem que nem automóvel tinha e usava sempre a mesma jaqueta surrada, fizesse frio ou calor. Alguns tentaram introduzir o assunto com Mercedes que fazia de conta que não ouvia e falava sobre Jorge como a pessoa mais antiga de sua vida. Os convites para aniversários e churrascos apesar de terem escasseado não cessaram, mesmo com todo mundo sabendo que Mercedes apareceria com Jorge a tiracolo sem nem comunicar. Depois de algum tempo, já convidavam e insistiam para que ele fosse. O sujeito era simpático, tinha boas tiradas, dava uma mãozinha nos preparativos e aperitivos. Nunca era inconveniente e as mulheres adoravam ouvir, entre risinhos, histórias desse estupendo amor que Mercedes contava interpretando cenas. Suspiravam pondo-se no lugar da atriz principal. Era certo que ali sairia casamento do tipo “até que a morte os separe”, eram unha e carne e Mercedes testemunhava ao vivo como viviam aos beijos numa empatia total de corpos, mentes e espíritos. Claro que havia aqueles que sussurravam maldizeres por causa dos bofetões. Tem mulher que gosta de apanhar, ficam mais bombadas, comentava Alfredo e ficava imaginando se a sua toparia alguns, quem sabe pudesse tirar o casamento xoxo daquela pasmaceira que andava. Zé Luis não escondia uma inveja despudorada e olhava a bunda de Mercedes sem disfarce, dizendo entre dentes “quem diria que a magrona era gostosa deste jeito, se eu tivesse adivinhado...” Quando Jorge não estava e isso era frequente, não aparecia todos os dias e nunca dormia por lá, as primas, amigas e amigas das amigas, visitavam Mercedes para confirmar os vasos sempre cheios de flores novas com cartões de fazer balançar a estátua da Liberdade. “Ai quem me dera ser desejada assim”, confessavam em voz alta para quem quisesse ouvir. Pé de vento é pé de vento, tão rápido chega, tão rápido some. Mercedes levantou cedo naquele dia e, como sempre, uma das primeiras coisas que fez foi dirigir-se ao jardim, seu olhar alimentava os canteiros deixando-os sempre floridos e verdes, fosse com que tempo fosse. Tesão tem energia, dizia Dona Maroca que já achava bonito aquele amor todo, apesar de uma inveja nem um pouco escondida e disfarçada de escândalo. Nem a pior das megeras deixaria de sonhar com um homem desses, deixa-se de ver que os encantos físicos são poucos, uma vez com uma criatividade tão grande e gestos de delicadeza de contos de fadas e fodas. O susto foi enorme, as estatuetas tinham sumido, o cano que alimentava a água do peixinho alimentava apenas a mangueira que escorria um fio como lágrima sentida escorregando cara a baixo até formar um riacho. Mercedes garimpou todas as explicações possíveis e as inacreditáveis também. Ele teria uma razão muito séria para este gesto por que só Jorge levaria embora os amigos de cimento que os haviam apresentado ou servido de apresentação. Esperou. Todos os dias puxava uma cadeira de palhinha para o jardim e esperava. Ninguém perguntou pelo namorado, as pessoas ainda têm coração e se sentiam um pouco perdidas também, tinham apostado alto naquela paixão que se transformara em paixão coletiva, todos a viviam. Agora, sem o Jorge, quando transavam com seus maridos e esposas não havia mais o que fantasiar, não havia a fusão magnífica de corpos fundidos que Mercedes descrevia enquanto Jorge apenas sorria e alisava seus cabelos. Se nem o amor deles sobreviveu, o que será do meu? Alguns maridos reuniram-se e decidiram procurar Jorge, trazê-lo de volta a qualquer custo, ou pelo menos saber sobre seu acidente fatal, pois só algo assim poderia tê-lo afastado desta mulher poderosa de cama e mesa que Mercedes era, ou se transformara por amor. Procurar aonde? Ninguém nunca se preocupara de indagar sobre moradia e outras coisas da vida dele, nem mesmo Mercedes, o importante era a sua existência que os nutria com aquele sorriso de prazer gozado e antegozado. Todos os dias a cadeirinha de palha ali, esperando com a Mercedes sentada. Aprendera a fazer tricô para que as horas não fossem tão longas e não observasse demais o cabelo embranquecer, as rugas chegarem, a flacidez puxar as carnes para baixo. Um dia encardido, sem sol nem chuva borrifou a manhã. Mercedes sentiu o coração pular no peito e esperou. O caminhão chegou só lá pelas 11 horas, mas para quem tinha esperado tanto, aquilo era nada. As estatuetas de cimento pintado foram descarregadas cuidadosamente e colocadas nos lugares determinados como se dali nunca tivesse saído. A fonte do peixinho foi para o centro do canteiro de lírios amarelos parecidos com os gritos que ela tantas vezes trocara com seu sempre presente amor. Não teve um só vizinho que não passasse pela casa de Mercedes naquele e em muitos outros dias, ela sentava-se coquete e arrumada, com flores na cabeça na cadeira de palhinha que já estava precisando de reforma. Perguntavam como estava o Jorge e ela respondia que muito bem e que se amavam mais do que antes e muito mais do que se podia imaginar possível. Mandavam lembranças e congratulações, certo era de que o casamento seria na primavera. Todos os dias ela sentou e voltou a contar as peripécias da paixão, houve um rejuvenescimento nos casais como já tinha havido e às crianças foi proibido fazer qualquer pergunta. Dona Maroca ajudou a confirmar os ruídos das batalhas amorosas e fazia isso sorrindo olhando para o velho Raul pela primeira vez desde que se casaram. Sempre tem um menino curioso e arteiro. Entrou jardim a dentro e desaforadamente perguntou à Mercedes: - Não cansa de passar os dias, sentada aí, no sol e na chuva? Todo mundo diz que espera um tal de Jorge que nunca ninguém viu. - Quem disse que não viu, ou ouviu, ou viveu com ele? Todos sentiram o pé de vento! Volta e meia ele arrepia novamente as pétalas de meu jardim e de todos os jardins à minha volta. “Seu” João Gomes passava nessa hora, tirou o boné como um cavaleiro e cumprimentou a vizinha para em seguida mandar seu mais forte abraço ao Jorge que ainda ontem falou com ele. Vana Comissoli