segunda-feira, 28 de outubro de 2013

UMA MOEDA, OUTRA FACE

─ Quinzimmm... Quinzinhoooo... ─ Foi o chamado. O menino pré-adolescente rosnou de volta: ─ Joaquim! Não se deu ao trabalho de gritar a reprimenda, ouvido ou não, ele não seria atendido na exigência que já devia beirar uns 5 ou 6 anos. Não bastava o terem feito eterna miniatura do pai dando-lhe o mesmo nome, puseram a abreviação ridícula de Quinzinho. Era o apequenamento da miniatura. O drama é que apelido pega, quanto mais quiseres te livrar dele, mais gruda em ti como tatuagem mal feita e borrada que se odeia, mas não tem jeito de tirar. Nem sequer era parecido fisicamente com o pai e muito menos na maneira de ser. Não era o mais velho, onde poderia se achar algum tipo de explicação, como o tão esperado filho e essas coisas bobas que nem sempre traduzem um sentimento verdadeiro. Era o caçula muitos anos mais moço que o irmão próximo. Sem nem entrar no mérito que Joaquim era um nome prá lá de ultrapassado e que sempre o fazia passar vergonha. Os colegas tinham nomes como Alberto, Paulo, Gustavo e ele precisava dizer entre dentes o malfadado Joaquim. Coisa de velho, ruminava. Gostava do pai. Quem não gosta? Ama-se até um mau pai, pelo menos enquanto a consciência não está totalmente desenvolvida, precisava fingir que não gostava para mostrar sua rebeldia sem perdão. Isso dava um trabalho danado, era preciso ser respondão, tirar notas muito baixas, criar situações para levar umas boas lambadas ardidas (o pai era de antigamente igual ao nome) e outras coisas difíceis de serem feitas quando não nascem espontaneamente. Aos poucos, conforme crescia, foi se isolando, assim não precisava ouvir o chamado- punhalada no ouvido. Só não conseguia se livrar da mãe que insistia com o apelido. Em torno dos 17 anos resolveu se conhecer, ou melhor, conhecer o significado do nome estigma. “Joaquim: Surgiu no hebraico como Jehoiachim, que quer dizer estabelecido por Deus (Jeová). A partir deste dia estabeleceu o que considerou sua real filiação e deixou de ser o filho do “seu” Joaquim para ser o exaltado por Deus. Aliviou sua alma, nada estaria acima disso. Acreditou demais nessa salvação, muito além da conta. Foi adiante e descobriu outras coisas que também introjetou: Joaquim: Que ser independente e escolher seus próprios projetos, decidir sozinho e trabalhar sendo o seu próprio patrão. Com espírito pioneiro e desbravador, é sempre muito honesto e leal. Gosta de desafios intelectuais. Quer ser ouvido e sua maior recompensa é ser elogiado em suas habilidades e atitudes. Era isso mesmo que ele queria, caía como uma luva e foi fácil começar a exigir que o respeitassem, foi dizendo de cenho apertado que não atenderia quem o chamasse pelo apelido indigno de um filho de Deus. No início não deram muita importância, aos poucos foram obrigados a esquecer o carinhoso Qinzim. Se fazia de surdo quando a mãe o chamava assim e depois passou a dizer palavrões que ela nem conhecia o significado. Chegava a cortar pela metade a palavra quando pelo hábito começava a chama-lo. O pai ignorou e como quase nunca o chamasse não houve problema algum. Com os irmãos foi mais difícil, muito olho roxo e muita cara amassada rolou até que eles desistissem. Achavam uma burrice, afinal Joaquim não é um nome sonoro e gostoso que caracteriza um menino do século XXI, Qizim era o “canal”. Joaquim se fortificou, aprendeu que podia mudar as coisas que não o agradassem. Foi para a academia e desenvolveu músculos, socos, em 1 ano era um possante rapaz que inspirava respeito só de olhar. Ninguém se metia com ele, sabiam que viria bomba e nem mulher de milico gosta de apanhar até sangrar a cara. Ele não tinha piedade, marcava seu território a ferro e fogo. Tinha uma missão e a faria de qualquer maneira, era seu dever diante de Deus. Atingiria seus objetivos embora não soubesse quais seriam, isso era de menor importância. Descobriria. O que valia era o andamento da conquista que considerava respeito. “Os “Joaquins” aprendem com os próprios erros e suportam melhor a pressão física e mental do que a maioria das pessoas. Procuram amigos com interesses semelhantes, por isso não são muito sociáveis. Geralmente trabalham para si mesmas, pois não gostam de receber ordens, quando muito atuam como administradores ou gerentes, pois preferem dar as ordens. São em geral proprietários de seus negócios, ou então são aqueles que os gerenciam. Autoritarismo, presunção, dominação ou mania de exatidão, são fatores negativos do portador deste nome. Quando são reprimidos por algo se tornam tristes, ressentidos e limitados. Obter sucesso na vida é fácil quando colocam em prática suas próprias ideias e realizam seus próprios planos”. Se era tudo isso por que o pai não o respeitava devidamente? Por que o pai não desenvolvera sua potencialidade plena e se resignara a ser mais um funcionário público sem expressão? Esta limitação do pai fazia com que ele mesmo se limitasse. Todos os “Joaquins” tinham o dever de corresponder à imagem. Não via isso? Os aspectos negativos envolvidos não lhe diziam respeito, afinal era um predestinado de Deus e nada de ruim o tocaria. Depois de resolvido o problema do apelido, se atirou aos estudos, era evidente que precisava ser o primeiro da turma por mais difícil que fosse. Uma a uma as etapas foram vencidas e o vestibular foi ultrapassado com facilidade, era Joaquim. Arredio, de poucas palavras, mas gestos de comando e olhar furioso. Amigos não eram necessários, mais tarde provavelmente quando precisasse de contatos para que sua vida profissional seguisse a linha traçada. A solidão o alimentava bem como uma raiva cega e surda do mundo que lhe devia respeito. As coisas estavam neste pé quando conheceu a Mariana. Era uma moça de cabelos ao vento, pernas que sabiam correr e mãos em constante movimento. Gostava de falar alto, de fazer amigos e de curtir sexta-feira com grupo de amigos em algum boteco qualquer para estudantes. De preferência alternando os amigos, deixava mais dinâmico, dizia. Entrou na faculdade na metade do semestre vinda de outro estado. Sabe-se lá por que Joaquim se encantou. Não tinha nada a ver com ele e no início achou inconvenientes as piadas que interrompiam os professores, com o tempo (tempo bem rápido) passou a rir para dentro, ela era mesmo irresistível. A necessidade de conhecê-la levou-o novamente a pesquisar nomes onde encontrava seus tesouros. Mariana: “Muito ligado a família, e emotivo costuma exagerar nos seus cuidados e corre o risco de sufocar as pessoas que ama. Tem muita energia e por isso deve sempre manter-se ocupado com alguma coisa. Nos relacionamentos amorosos ou mesmo de amizade, quando se magoa, procura se recolher para dentro de si mesmo e só sai quando recebe um pedido de perdão. Um bom conselho seria aprender a controlar seu temperamento e deixar as pessoas que ama mais na delas”. Era certo que ela não conhecia a própria alma, aquela dinâmica de extroversão era uma fachada e ele a ajudaria a se descobrir sem que os aspectos negativos viessem à tona. Ajudando-a neste encontro reforçaria seu próprio destino de aceitar desafios e de receber elogios que receberia friamente sendo eles apenas reconhecimento de sua competência. Mariana nem sequer prestou atenção nele e aos poucos foi se incomodando com aquele “nerd” importuno a assediando de forma tão fria que a vontade era de vestir casaco e sair correndo. Por algum tempo apenas sorriu gelado para ele, não era mal educada e todo mundo entende sorriso sem graça. Ou não? Joaquim começou a questionar o quanto tinha sido contaminado pelo Quinzim que a força de seu nome, seu âmago não derrubava as barreiras da menina boba que gargalhava com todo mundo, menos com ele. A falta dos elogios do pai, só podia ser isso. Mesmo quando passou tão bem no vestibular ele apenas lhe dera um tapinha nas costas dizendo “é isso aí, Quinzinho”. Total desrespeito. Insistiu junto à Mariana como pode e aguentou. Os dias passavam e dentro dele crescia a raiva descomunal que naturalmente ele não expunha. Ela se desenvolveu a ponto de não poder mais encarar os irmãos e a mãe que era também uma grande culpada: deixará o pai lhe dar aquele nome idiota. As notas foram despencando e não era mais o primeiro da turma, não conseguia se concentrar nos livros, o rosto de Mariana rindo dele, debochando. Tentava se segurar em algum valor guardado do Joaquim, nada havia a segurar, Deus se calara. Estaria isso também estabelecido? Há carga em ser o preferido do Senhor? Qual era a missão que precisava enfrentar agora para retomar seu caminho divino? A resposta estourou numa madrugada de temporal entre raios e trovões. Recomeçar. Esta era a verdadeira forma de matar o Joaquim torto, com marcas de segundo, ele depois do pai, ele não o único. Só havia um jeito de ser o primeiro, os reis sobem em majestade quando deixam de ser príncipes, apenas um pode ser rei. “O rei está morto. Longa vida ao rei”. Cheio de sangue do pai nas mãos, não sentiu como se o rei estivesse morto e muito menos que fosse ter longa vida. Sentiu um gelo subindo pelo peito e estraçalhando os últimos sentimentos existentes. Até José teria servido, todos os nomes ou qualquer um, menos em nome do pai. Vana Comissoli

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

ABANDONA-ME

Ao meu amigo anjo, Arthur que das estrelas está me olhando junto com sua turma que não toca harpa, mas um bom rock da pesada. Briga comigo! Estás aí parado, com esse sorriso feito de silêncio, tão plácido e tranquilo. Apenas sorris, sem me ver. Teus olhos mudos, como que enxergando minha alma que eu não conheço. Esqueces o tormento do meu pensar. Levanta e vem brigar, que eu estou armada até os dentes, vestida de amazona e montada no meu cavalo castrado. Sei, não vens de covarde que és! Quantas vezes me botei na tua cara riscando de sangue essa tua felicidade imensa em não fazer nada, só para ver se te sacudia um pouco. Ah, que te odeio porque não lavaste a louça e dormiste como um bebê enquanto eu precisava correr, pensar e sentir dor. Ah, anseio que morras, pois conheces a vida e a aceitas, enquanto eu me debato na incompreensão de ser gente. Pareces surdo. Não ouves o meu delírio? Não respondas, bem sei que ouves. Tu foste o único a compreender, vi isso no lago silencioso do teu olhar. Tu me mostraste minha mágoa e minha raiva, permitindo que elas tomassem conta de ti e gritando comigo. Ficando tão terrível que me obrigaste a calar em choro desesperado enquanto me batias. Tu fizeste o que nenhum amor fez comigo. Trocaste de lugar: tu eras eu, e eu... Eu nunca consegui ser tu. Fizeste isso para me dar alguns instantes de atormentada paz, a única que me era possível. Roubaste minha culpa e minha dor para que eu pudesse dormir. Nunca me disseste nada, fizeste em silêncio, embora teu silêncio soasse em mim como uma orquestra inteira executando um “Aprendiz de Feiticeiro”, crescendo em cada pesadelo meu. Fizesse esse gritante silêncio para não me ofender. Sabíamos nós, que eu, a grande ofendida, não me entregaria jamais ao descanso proporcionado pela partilha. Eu precisava seguir sozinha meu caminho de tortuosa agonia. Não sorrias assim, como quem foi pego roubando. Como eu podia dizer que sabia e estragar toda a validade do nosso jogo, do nosso brinquedo com a verdade? Precisávamos fingir por minha causa, por mim, que nunca soube viver em paz. Sei que me fingia de burra e dizias que eu não era, para em seguida me xingar de estúpida, reforçando o meu teatro. Assim eu poderia continuar gritando e quebrando cinzeiros que se espatifavam no chão. Lembras? Eu dizia para quem quisesse me ouvir que, não eras um homem e teu corpo não despertava em mim nada além da obrigação. Calavas, como sempre, deixando que o veneno saísse pela minha boca para não me matar por dentro. Deixando, porque fingias dormir enquanto eu acariciava teus cabelos. Nem te mexias e assim, o carinho saía pelas minhas mãos e não se estrangulava dentro de meu peito. Eu berrava que não era louca. Tu que era impossível de se conviver. Tua voz, vinda de paciência imensa, me dizia: - sim, és louca! Em seguida me abraçavas chorando. Às vezes, quando eu podia ouvir, me ensinavas que louca era minha mãe, que eu não fosse lá, pois voltaria igual a ela, pior ainda. Eu, no entanto, precisava ir. De que outra maneira alimentaria a tortura da minha infância, do estupro que meu pai me fez porque eu acompanhava minha mãe em fugas nas tardes de sol e chamava o amante dela de tio, abraçando-o porquê dava-me caramelos. Balas de soda, tão boas de ferver na língua! Não sorrias assim como se isso fosse brinquedo e não importasse nada na sua magnífica importância, porque bem sei que não importa. Tu me mostraste isso na constância da tua presença. Eu podia te odiar porque começaste a beber e tomavas um porre a cada fim-de-semana. Bem sabes como odeio que bebas por mim, para poder continuar calado o resto da semana. Abandona-me! Não te suporto porque podes ter mil mulheres e delas foges apenas para me atormentar com essa fidelidade gosmenta e imprescindível. Odeio-te porque me engravidaste e eu tive que carregar a barriga sozinha, enquanto continuavas a esperar. Esperar o que? Se apenas eu podia aguardar uma mudança nessa tua passiva ansiedade por mim. E tem mais, o filho, amorosa ironia, teve a tua cara. Odeio-te porque não me ferves o sangue e não me fazes rolar pelo chão com as minhas pernas, sempre tão apertadas, forçadamente abertas e meu corpo fechado por essa vez, exposto. Quero que morras, porque tens cuidado comigo e finges que acreditas na minha falta de tesão enquanto me trepas com delícia e carinho. Por que não me machucas, não me viras de costas para me penetrar de horror? Não quero cozinhar e jogo as panelas no chão. Quebro os pratos em seguida. Então cozinhas - merda, como o fazes bem! - Sento-me à tua frente e mastigo com furioso prazer. Antes, porém, varreste os cacos, guardando os pedaços do meu jarro predileto. O primeiro a espatifar-se, para, numa madrugada qualquer, restaurá-lo. Mexe-te, homem, vê se trabalha, faz alguma coisa! Que me importa se o jornal fechou! Eu sei que a culpa é tua, és um frouxo e muitas vezes preciso bancar o teu cigarro. Enquanto isso desistes e recomeças sabendo que eu não posso parar, é a única maneira de poderes fazer tudo que te dá vontade. Dormes. Como dormes! Eu preciso levantar e viver um dia horrível, no entanto, as plantas só vicejam contigo, as minhas morrem, afogadas ou secas. Hoje nem sequer retrucas, resolveste não me acompanhar dessa vez, te fechas e eu que me dane. Aproveitarei para dizer que também te odeio porque todo mundo te acha sensacional com tuas ideias silenciosas e perfeitas, mesmo que apenas abanes a cabeça em concordância a alguma coisa dita. Olho-te e vejo o diabo que és apesar de tentares me iludir com tua aura de luz. Eu não vejo nada! Isso sim é loucura: ver o que ninguém percebe. Eu não entendo e só tenho a ti para odiar, por isso odeio o mundo inteiro. Agora subimos no carro. Claro que arrumaste mal a bagagem, não vejo bem onde, mas sei que, ou reorganizo tudo, ou ela virá abaixo. Eu começo com raiva a viagem e dirijo, já que faço isso melhor do que tu. Afinal chegamos. Dirigi tão bem que o carro ficou aos pedaços lá na estrada. Responde-me, responde por inteiro uma única vez, desfaz esse sorriso idiota e fala: - Por que tiveste que morrer bem agora? E só agora quando consigo entender tudo e não sorrirás mais para mim, que bem sabes, te amo tanto! O que ninguém vê, eu vejo: te sentas por sobre o teu corpo e teus mansos olhos são brasas vivas. Falas, te ouço tão bem como sempre. - Querida, mas foi só por isso que eu vivi! Vana Comissoli

CONFESSO QUE APRENDI - Contigo

Aprendi... A ouvir os passos da noite sentindo os pés no chão. A jogar no fogo os véus do pudor infecundo. Aprendi contigo que podemos pensar que não somos deste mundo. Somos pássaros, astronautas, filósofos e artistas, mesmo quando a vida nos chama de ilusionistas. Aprendi que mão na mão, é carinho. Não tem idade, nem feição. Do cume de altos montes, teus braços ao céu erguidos, joguei à fome dos inválidos, minha vergonha já mastigada. De todo o suco, amputada. Joguei aos porcos, o chorume dos repolhos podres, com que me alimentei, depois de me teres ensinado a cor do sorvete derretido e dentro da tua boca, sorvido. Aprendi que a noite também é dia. O dia, na noite se esconde, quando o cansaço sacia o desejo do meu corpo no teu. Aprendi que rir alto, não faz mal. Traz inebriante alegria nas brincadeiras de nós, crianças, para sempre baldias. Tu me trouxeste, em grandes braçadas, o despertar da vida latente que em mim, só ardia. Brasas que eram a perderem-se no cinza graúdo de meus dias. Gosto de chocolate amolecido, terra de sal e de azeite, nas dobras de teu aconchego me mostraste. Ostras, calamares, cogumelos bravios, ondas dos sete mares. No meu ventre derrubaste. Em vestido de festa, transformaste a nudez de meu seio. A sisudez, o aviso, o não faça, liquefizeram-se na tua risada escarlate. Da cor de teu coração que, entre beijos, me doaste. Nos porões, os ratos ainda gemem, soam seus ruídos mesquinhos. Não são ratos, meu bem, mas passarinhos. Recolheste assim, meu medo em abraços. Refeita e nua, reconheço a vastidão do que me deste. Doce, tropical, ardente, a visão onipresente da vida em mim pulsando. Te confesso, aprendi, a amar tudo aquilo que vivi. O bem e o mal, a hora boa e a hora torta, o conchavo e o concílio. Te confesso, em ti, eu vivi. Se partires, pela porta entreaberta, hei de chorar, estou certa, mas não lamentarei nem sequer a saudade que amargarei porque o vivido jamais será esquecido. Meu peito, amornado para sempre, te carregará, preciosa dádiva, inesquecível presença, das ousadias que ousei. e do amor que roubei Vana Comissoli

A ÁRVORE DO MUNDO

Suo. Há duas horas suo. Mourejo sob esta enxada que me enche os dedos de bolhas aquosas, enredada em minhas ramagens que vicejam pornográficas embaixo deste sol úmido. A profundeza do buraco está a contento, já posso ver os restos de adubo com que o enriqueci. Preciso de uma terra uterina e gorda para receber alimentar e criar. Tudo foi como sempre: um amor desentupido, canal aberto para as delícias do tocar e ser tocado. O prazer, fartura de tesão, pernas, braços e bocas abertas. As mudanças, me lembro bem, coincidiram com a vinda de minha irmã caçula para morar conosco. Òrfã se descobrira no enterro duplo de pai e mãe que cumprindo promessa, tomaram juntos uma espumante batida de banana com veneno de rato, agradável até ao mais convicto suicida. Acharam que a filha temporona já estava bem vivida nos seus completos dezessete anos e deram por finda a tarefa de se preocupar com outra coisa além deles mesmos. Há alguns anos não convivia com Belinha, para mim ainda era aquela menina mimada e birrenta de oito anos que eu deixara em casa e seguir o recente marido para outra cidade. Deparei-me em escandalizada surpresa com uma mulher cheia de trejeitos e abundantes seios. Olhares capciosos ou capituosos, a boca vermelha de batom da manhã até a noite. Muitas vezes a espiei dormindo, acreditei que ainda assim estivesse em vermelho Lancôme. Não cheguei à conclusão alguma nesta idade sempre se tem boca de flor. Não me agradava a idéia de herdar uma filha prestes a entrar na idade da cama desvairada, enquanto eu mal chegava aos trinta e cinco anos. Promessa descabida por promessa descabida também tinha a minha: jurara à mamãe que olharia a garota se alguma coisa fúnebre acontecesse. Tenho uma raiva danada de mamãe por isso, organizara sua vida para sair a saracotear com meu pai na morte me deixando esta herança. O sexo era a chave-mestra da relação dos dois, acho que a escolha da partida se deveu mais à brochura de papai e a secura menopáusica de mamãe do que por qualquer outra razão. Belinha passava os dias me atordoando com canções nebulosas que eu jamais ouvira, berravam amores de fogo e paixões descabeladas. Saía do banho com os cabelos pingando sobre a camiseta branca e tinha a péssima mania de não usar sutiã, a transparência de bicos e redondezas espalhava-se pela casa junto com o perfume doce e enjoativo que usava. Arrebanhava as saias já curtas para carregar suas tralhas de manicura e outros que tais tão desimportantes quanto estes. Eu me esforçava ao máximo para ensinar-lhe o recolhimento que uma menina deveria ter: a elegância do pudor e a sensualidade existente num equilibrado cobrir-se. És uma velha ultrapassada, cheia de preconceitos e bobices, me insultava. Meu marido Hugo, me ajudava a corrigi-la. Cobria seus peitos expostos até com as próprias mãos se não houvesse um casaco ao alcance. Enlaçava seus ombros vestindo-os em abraços paternais. Espremia seus cabelos deixando a água pingar nos ladrilhos brancos de minha cozinha, cuidava dela carinhosamente. Um carinho a que eu não podia ceder e era grata pelo despojamento dele. A desgraçada respondia com retorcer-se e dar risadinhas que reconheci sacanas. Por esses fatos é que lembro bem quando a delicadeza de Hugo começou a mudar e, as implicâncias apareceram. Minha comida tornou-se insossa ou salgada demais para ele. Percebia cada grão de pó escapado de minha vassoura distraída. Reclamava dos lençóis engomados que lhe picavam a bunda, das camisas que nunca mais estiveram bem passadas. Por fim descambou para os ensinamentos de que eu precisava fazer as coisas deste ou daquele jeito: eu fazia tudo errado. Belinha ria das admoestações do cunhado, franca ou sorrateira, porque muitas vezes a vi espiando as reprimendas com seu olho ardido. Tive certeza que se divertia às minhas custas. Uma coisa estranha nasceu no meu peito. Numa manhã de verão, quando estávamos os três prontos para curtir um domingo na praia, o olhar de meu marido escorregou no biquíni indecente de minha irmã que nem se dava ao trabalho de disfarçar, já mostrava tudo, seios e bunda. Não pude criticá-lo só um cego não enxergaria, embora, tenho certeza, sentiria seu cheiro de cio. Achei que era um mal-estar passageiro e que eu estava exagerando. Na porta de casa, Hugo puxou a alça de meu maiô que voltou num estalo ao ombro. Denise, belo maiô, disfarça bem a barriguinha e deu-me um tapa no traseiro. Tremi como gelatina. O parto da dor continuou a cada dia. Algo apertava meus órgãos a partir do coração, espremia meu estômago, mastigava o fígado. Fui ao médico, poderia ser um câncer, melhor prevenir do que remediar, eu pensei. O dito doutor de merda disse que estava estressada esgotamento nervoso. Toma pílula, dorme bem, toma pílula dorme mais, atravessa o dia numa zonzeira, mas depois tudo passa, não é nada, logo sara. Hugo e Belinha criavam mais e mais afinidades. Passavam horas jogando xadrez, este jogo idiota e difícil que só os desocupados têm tempo para aprender. Quando ela ganhava, nem sei como, meu marido cultivava as pedrinhas brancas e negras há muitos anos, seu riso se espalhava alto e gargalheante pela casa. Tinha um estoque infindável de riso, a infeliz. Hugo, para comemorar, a girava no colo e ela gritava ais parecidos com os dos gatos nas noites de caça às gatas desavergonhadas. Durante uma dessas comemorações senti a primeira agulhada de dentro para fora e surgiu um ponto verde e doloroso do lado do pescoço. Uma espinha inflamada ─ diagnosticou o tal médico idiota ─ não é nada, logo sara. Todos os dias eu examinava o verde que vicejava. Examinava também a minha raiva que vicejava. Apareceu a primeira folha, a segunda e um ramo inteiro, foi um alvoroço, até a sonsa da minha irmã se preocupou. Quando a ramagem já se espalhava pelo chão e eu não precisava mais de vassoura, meu marido expulsou-me do quarto, fui para a cama de Belinha. Não havia outros quartos na casa sobrava o meu lugar para ela dormir. As noites se transformaram numa sucessão de gritos, uivantes meus, orgásticos os deles. Foi nestas noites que planejei tudo. Com paciência me preparei deixando meus ramos arranharem os móveis e quebrarem os enfeites da casa que eu não precisava mais. Esperei que mergulhassem no sono da safadeza e entrei na ponta de minhas raízes, as coifas se encarregariam de abafar ruídos denunciatórios. Amarrei os tornozelos de Belinha com o cadarço dos sapatos de Hugo. Ela nem se mexeu. O sono satisfeito é um bom companheiro, eu ainda me lembrava. Passei um cinto em torno dela e atei à cabeceira. Ela deve ter pensado que era um abraço amante porque gemeu baixinho e disse adormecida: Mais tarde, meu bem, mais tarde... Hugo dormia de barriga para cima. Por longos momentos fitei seu membro lasso, lambuzado, nojento... Saudoso. O sereno cobriu minhas folhas, pingou sobre o ventre de meu homem, do homem de Belinha, que se retorceu sem mudar de posição: estática e maldita. Eu, tão volátil e tão mutável, ali. Ali. A faca estava bem enfiada nos meus liames, na minha ira, no meu amor rechaçado e ardente. Os bicos dos meus olhos cresceram desmesuradamente em segundos. A faca caiu no chão e enterrei os dois bicos de aço no peito desprotegido. Torturei-me dentro da carne, trilhei caminhos que desaguaram em rios de sangue, espetei o coração, furei o fígado, estraçalhei os miolos, cavei os olhos e assinei, no seu umbigo todo o meu desespero. Não houve grito. A morte, no sonho, é doce e generosa não maltrata com dor e consciência. A morte é um alívio quando não sabemos viver. Uma perda para quem sabe, quem crê como eu. Adeus. Adeus a tudo. Sacudi minha irmã, bati nela cheia de tapas e de horror. Essa sentiria cada segundo de minha agonia. Ao se deparar com minha verde cabeleira a encobrindo uivou como lobo nas estepes geladas do prenúncio do mal. Eu não gosto de lobos, eles são maus. Minha risada enroscou-se em meus cipós, enredou-se nos pelos pubianos de Belinha, apertou sua garganta branca. Não, eu não estrangulei, era muito pouco. Os pássaros de chamas de meus olhos afiaram as garras e os bicos, agora curvos como foices, a rasgaram desde os pés até a testa lisa. Fizeram com cuidado e atenção. Eu não queria a morte rápida e compassiva. Eu queria o horror e a penitência. Esperei a certeza de que Belinha ainda estivesse lúcida para cravar em seu peito todo meu ódio. Não poderia matá-la antes de assistir sua tortura merecida. Apenas uma estocada, tão frágil o meu amor. Encostei-me à parede, senti minha seiva empedrando. Enterrei-os com grande esforço, difícil é para as árvores manejar pás e enxadas. Enchi a banheira e despejei quatro caixas de húmus, uréia e adubo mineral, deitei-me naquele caldo de cultura, me conservariam em boas condições durante os meses que o adubo orgânico levaria para enriquecer a terra. Suo. Já há duas horas mourejo sob esta enxada que me enche de bolhas aquosas, enredada em minhas ramagens que vicejam no sol úmido. A profundeza do buraco está a contento, enxergo, no fundo, o resto de adubo com o que enriqueci. Preciso de uma terra gorda e uterina para receber e alimentar. Desabrocharei em flores e frutos negros e pássaros de rapina encontrarão guarida em meus braços.

domingo, 20 de janeiro de 2013

A SENHORA E O MENINO

Sob o viaduto agasalham-se os cidadãos rejeitados pela cidade que tem fome. Uma dupla chama a atenção: uma mulher muito gorda tem no colo um menino de idade entre cinco e dez anos. Difícil definir. Ela está recostada no concreto com o menino atravessado sobre as pernas. No sono dele, a cabeça e um braço escorregaram para fora do colo. De longe o menino viu a imensa figura recortada pelo clarão proveniente do poste da rua, embora alguns galhos do jacarandá que o rodeia coloquem manchas escuras sobre ela. Arrastou o passo, os pés nus limpando o chão. Das Dores não era de brincadeira e o menino não cumprira sua promessa. Não fora feliz. Das Dores viu o moleque retardar-se. Buscar uma lata amassada e volutear com ela. Esfregou os pés saídos das chinelas rotas com vagar, como touro que se dispõe a uma peleia. Ajeitou as nádegas colossais sobre o exíguo muro e esperou. Rafael percebeu o tapete de flores lilases, quase luminosas, devido aos olhos que se escondiam procurando desvios. Não teve tempo de achar bonito, nem de verificar que eram flores. A mulheraça atacou-o: - E aí? Conseguiste?- Deu nada, das Dores. Todo mundo unha de fome, hoje. – A voz saiu firme que boiola não era. Ela cresceu sobre ele, a banha dos braços batendo no compasso do corpo. Rafael encolheu-se, protegendo o rosto na curva do cotovelo. A mão desceu pesada ao lado do ouvido. Junto com o baque veio um zunido fininho e o escuro. Deu uma vontade danada de entregar-se, mas ficava mal, das Dores pensaria que estava se acovardando. Reagiu. Levantou a cabeça. A mão desceu do outro lado. Chamou-a de filha da puta velha e gorda. Imediatamente ela desabou sobre a mureta e soltou o choro fácil. Rafael respirou aliviado e esfregou a cara ardida: estava tudo bem. Já passara... Já passara. - Tu és burra, das Dores. – Falava e badalava diante do nariz dela a lata vazia. – Pensa que o pessoal dá comida todo dia? Tá difícil tem um mundéu de casa sem ninguém. Um mundéu de gente com fome. É sábado, esqueceu? Ela espremeu os olhos com os dedos de unhas curtas, roídas e debruadas de preto. Foi puxando uma ladainha que saía de dentro do peito acompanhada de suspiros, de ais. De arrancos de respiração e um cheiro azedo de fumo. - Ta ruim... Ta ruim! Vive dizendo isso. Por acaso enche barriga? Por acaso não preciso comer? Tu também precisas... Embora nem tanto já que é mirradinho. Porcaria de mãe tu tivesses que não te fez grande, magrinho assim, não assusta ninguém e dificulta outra atividade que a gente queira arrumar. Não sei onde estava com a cabeça quando te peguei na rua. – Peguei de pena, ouviu? – A voz cresceu: - De pena! Rafael ouvia de cabeça baixa. Revirava as flores lilases nas quais pisava com desaviso, roubando sua luz, transformando-as numa pasta escura e úmida. O muxoxo da boca mostrava sua contrafeita concordância. Das Dores calou-se. Enfiou a mão entre os seios e coçou-se sacudindo as tetas num pra-baixo-prá cima acompanhado pelos olhos baços de Rafael. _ Quem se faz agora, meu lindinho? – perguntou puxando-o junto ao peito, aonde ele foi se chegando já de cara ladeada para não se afogar. Um rido fechando os olhos e estrelas mostrando os dentes. Passado um minuto respondeu que não se preocupasse, ele era homem e daria um jeito. Ele não tinha prometido que sem comer nunca mais dormiriam? E ela não tinha acreditado? - Claro que sim, meu pintinho. Claro que sim! – Esfregava os braços do menino, sacudia o corpo a niná-lo em pé mesmo. Rafael empurrou das Dores escapando das carnes fartas. Atravessou a avenida correndo. Um carro buzinou furioso. Afinal o outro lado. Tudo tem dois lados. A porta do bar botava uma lua clara na calçada, carregada de cheiro de fritura, de queijo derretido, do que não se ousa. A miséria. Rafael foi entrando meio espremido na parede e escorregou pelo balcão. Foi interpelado pela voz de mando: -Que é guri? Vai dando o fora! - Tio, dá um sanduba. To com fome, não comi ainda hoje. Os olhos do homem caem na cara suja, vêem os braços desamparados e os ombros um pouco mais caídos do que de costume. - Fora! – muda o tom e fala baixo: - Tem muita gente. Volta mais tarde. O moleque foi saindo devagar, pesando as possibilidades. Na mesinha junto à porta, sentava-se um velho. Acho que já tem uns cinqüenta anos, pensou Rafael, aproximou-se, pediu um troco, ganhou uma moeda. Já servia. Na rua olhou para das Dores escarrapachada no muro. A noite caíra por completo. A luz do poste tornara-se mais forte e o chão lilás parecia néon. A mulher colocara um pé sobre a mureta e era um milagre que conseguisse equilibrar-se. Estava concentrada vasculhando alguma coisa nos dedos. Rafael lembrou seu cheiro de suor velho, urina choca e sujeira entranhada. Precisava dar um jeito, ela não poderia ficar triste. Foi até a fruteira na outra esquina. Primeiro pediu e depois roubou a maçã vermelha. Das Dores gostaria. Atravessou a avenida. Desta vez não retardou o passo, chegou triunfante, a fruta escondida nas costas. - E daí, seu bosta, conseguiu? – A mulher sorria e estendia a mão. Recebeu a maçã que esfregou forte na saia. Rafael sentou-se entre as flores do chão com o olhar triunfante grudado na amiga. Mais da metade da fruta fora comida quando foi entregue ao menino. Ele deu poucas mordidas e devolveu. Das Dores limpou a boca com as costas da mão e arrotou. Rafael fez a mesma coisa. Ela declarou que o aperitivo estava bom. Ele sacudiu a cabeça afirmativamente e contou que "seu" Carlos do bar daria comida. De novo a mulheraça atochou-o no peito e embalou-o, em seguida empurrou-o quase o derrubando. Quando a lua arredondou no meio céu já haviam comido a maçã, um cheeseburger, meio cachorro quente que alguém farto colocara no lixo, duas coca-colas, um yogurte e dois goles de cachaça que bebida boa tem que ser arrematada. Os últimos petiscos foram comprados depois que das Dores vasculhou o cofre dos seios. Rafael encostou-se nas pernas travesseirosas e fechou os olhos. Ela coçou-lhe a cabeça por instantes e convidou-o a partir. Abandonaram o círculo de luz caminhando lado a lado. Ele, de vez em quando, chutando uma lata, uma pedra. Tinha colocado os tênis dois números maior que o pé, ela sempre os trazia na sacola. Caminhava balançando de um lado para outro, as coxas batendo enquanto o resto das pernas não se tocava. Às vezes apoiava-se na cabeça do menino. Chegaram ao viaduto. Ela sentou ajeitando os trapos de cobertores sob a bunda e puxou-o para o colo. Ele aninhou gostoso, enfiando o nariz no sovaco quente. Das Dores encostou a cabeça no concreto. A noite estava tépida, era bom o tempo da primavera. Do outro lado da avenida os jacarandás derrubavam suas flores em ilhas luminosas e lilases. Demoraria a dormir, podia ninar um pouco seu anjo. Mergulhou o nariz nos cabelos dele e pensou que se amanhã fizesse calor o mandaria tomar banho no lago da praça. Aos poucos fechou os olhos e cochilou, nem percebeu quando a cabeça e o braço de Rafael escorregaram para frente quase tocando o chão. Vana Comissoli

NO PRINCÍPIO...

E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. Gênesis 2:7 E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. Gênesis 2:22 Adão ainda estava cabisbaixo pensando no mico pago, saindo daquele jeito “nu com a mão no bolso” do Paraíso chatinho, certinho. O anjo guardava na face de porcelana (por que será que todos os anjos tem face de porcelana sem nenhuma espinha, ou verruga? Depois dizem que o Pai não tem preferências!), um sorrisinho de escárnio feliz enquanto embainhava a espada maior do que a de Ricardo coração de leão. Lá por trás das asas se vangloriava: o que estavam pensando esses miseraveizinhos se imaginando donos do Éden e filhos preferidos de Deus? Tomem, papudos, vão cantar em outra freguesia e a maçã... Terão que vender na feira. Eva, emburrada, pensava que era fácil ser mandão e dá-lhes um pé na bunda com um espadão daqueles. Foi quando voou uma borboleta inconformada com a injustiça feita e se bandeou para o lado de Adão e Eva. Pela primeira vez a primeira mulher parou para ver as cores rutilantes das asas do inseto e se deu conta que poderia ter sido uma boa sair do som de harpas enjoativas se pusesse a imaginação a funcionar. Imediatamente sonhou luz neon, grifes fantásticas que brilhariam nas letras luminosas na fachada de shopping enormes onde poderia adquirir e, melhor ainda, vender, asas de todos os matizes para as mulheres que pariria às pencas se fosse abelha. O anjo voltou para o Paraíso e ficou meditando em como seria agora sem ter ninguém para dedo-durar, podia ter sido uma ruim emplacar aqueles dois branquelos. Não teria mais a quem pregar peças de bem e mal e a coisa paradisíaca tenderia a ficar muito chata. Em seguida questionou o Pai sobre por que os tinha feito branquelos se nem sequer era uma cor original, muito mais razoável tê-los feito negro ébano para suportar o calor que teriam a enfrentar. Talvez para o castigo ser maior ainda ou estaria já meio entediado e começava a criar a primeira confusão de racismo para quebrar a monotonia daqueles anjos saiúdos que nem sabiam dançar. Adão viu Eva se requebrando toda enquanto colhia flores (o Pai foi bonzinho e deixou este colorido escapar sorrateiro para dar uma forcinha aos filhos amados). Pois Eva colhia flores, ainda não tinha inventado o tecido e precisava de algo bonito e estético que cobrisse a perseguida para os muito meninos, rola para as carolas, buceta para os à toa e vagina para os intelectuais. Como ainda não tinha inventado nada para fazer e vendo Eva se divertindo (a mulher é sempre mais criativa, logo criou a diversão), olhou as nuvens do céu que também escapavam do Paraíso pela fresta que o anjo, ocupado com pensamentos pagãos de revanche satisfeita, deixara. O vento do lado de fora da temperatura sempre perfeita, era forte e empurrava as nuvens formando desenhos. Foi assim que Adão aprendeu a sonhar vendo as formas malucas desenhadas nos céus. Assim, quase sem querer, ou dado pelo Pai, segundo algumas teorias, que penalizado pelo severo castigo, deu um jeitinho bem brasileiro de facilitar as coisas. O Pai era a sabedoria sem idade e sobre todas as idades que viriam, portanto, logo de cara já foi inventando o gérmen que, depois de maduro, seria o Brasil. Adão perdeu a desesperança e acontecesse o que acontecesse, sempre começaria tudo outra vez. Fosse dilúvio, terremoto, vulcão, enchente, explosão atômica fabricada, fome de secar tripas, matança desgovernada, guerra ou guerrilha, Adão tentaria e tentaria e tentaria novamente. Até espetado numa cruz ele falaria em ressurreição. Eva, se maquiando sobre margens plácidas declarou convicta: Espera um pouquinho que te dou uma força, Adão. Mas pega leve senão me mando com algum Moisés, ou Efrain que vai nascer ainda. Adoro minha programação de homens “barriga tanquinho” e, mesmo podre de velha, ainda caço um Gianecchini lá pelos ainda não idos anos 2000. Sou mulher, posso qualquer coisa e fora do paraíso, posso mais ainda. A borboleta, percebendo a brecha na entrada do Éden, deu um assobio maroto e a bicharada escapou aos casais para o lado de cá que já era muito mais divertido e se poderia fornicar, fofocar e ir ao cinema mesmo que dando um duro danado. Muito tempo depois, quando os dinossauros já tinham perdido a vez há centenas de anos, nasceu uma mulher de nome Maria que, dizem, veio interceder pelo lado negro da força e os esotéricos segredaram que ela já existia desde sempre e era uma borboleta. Por isso, até hoje, disse que as borboletas são a presença de Maria quando estamos lutando com Darth Vader. O anjo está até hoje morrendo de dor de cotovelo por que apesar dos esforços em mandar tudo que é desgraça para o lado humano da vida, desde chocolate mofado até crack desencarnado, as coisas dão certo no geral. Dizem que a mania de Adão acreditar e ter inventado um desvio chamado Esperança. A cobra... Que cobra? Não apareceu nenhuma! Dizem que a culpa foi dela enfeitando a maçã com sedutoras cores vermelho brilhante. Que escolha mais boba! Com tanto fruto mais suculento e saboroso, escolheu logo a maçã! Essa história de cobra foi pura invenção. Outra mania a que Adão aderiu: sempre encontrar um bode expiatório para as asneiras cavalares que faz. Com a permissão do senhor cavalo que é lindo e tão certinho que até seu cocô é redondo e não faz sujeira espalhada. O senhor Pai está lá feliz da vida com sua criação, tanto que lá pelas tantas chamou um anjo e provocou, provocou até o coitado cair em desgraça e perder o luminoso nome de Lúcifer se transformando em Satanás. Mas não foi por mal não, foi por amor, a vida seria coisa tão chata quanto o Paraíso se não houvesse um pouco de pecado por aí. O sal da vida, que sem sal só serve para quem tem pressão alta. Vana Comissoli

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A NEGOCIAÇÃO

A tarde ia a meio, o sol se entornava pelos campos espraiando lagos ilusórios. O infinito se reconhecendo no pampa. Vazio e verde. Uma incomensurável colcha cobrindo a terra até o horizonte longínquo. Esta era a visão para a qual se abria a varanda da estância. Os dois patrões sentavam-se em amplas e confortáveis poltronas, modernidades que o Coronel Leôncio, dono da casa, trouxera da capital. O chimarrão cambiava entre eles em espaços rítmicos e a conversa variava de acordo com o intervalo das mamadas na bomba e o encher da cuia. Tratava-se de negócios, a solenidade se impunha e, a ocupação com o ritual gaúcho, propiciava tempo para pensar. Reavaliar as ofertas, sopesar os aceites. - Como lhe digo, Coronel Atelfio, o negócio é mui bonitaço, por isso lhe chamei primeiro. Somos amigos de velha data, de lenço vermelho os dois, seria descabido não oferecê-lo em primazia. – Justificava o hospedeiro rasgando-se em gentilezas camufladas pelo tom imperioso da voz, coisa de macho gaúcho quando está arriado de medo. O outro, cerca de dez anos mais jovem, tirou a faca da bainha presa à cinta e palitou os dentes fortes a deixar claro que não era chimango. - Lhe agradeço, bem vejo sua finura que, aliás, de há muito me é conhecida. A verdade é que não vim preparado para tal proposta, pensei em campos e boi. Impõe-se que me explique os detalhes da empresa. É mui grande. O coronel chamou a guria de serventia da casa, costurada ao batente da porta à espera de ordens e cujos ouvidos, por hábito ou desaviso, nada captavam. Fosse ela buscar algo de se mastigar, o estômago reclama. Carne do churrasco sobrado, ou um mogango fervido recém. Logo o anfitrião limpou a garganta fumaceada desde os doze anos por palheiros de sabor acre. Solene, pôs-se à disposição do visitante para os esclarecimentos exigidos. - O que lhe renderá essa empreitada? Sem dúvida seria difícil explicar tim-tim por tim-tim. Nem poderia descrever a alegria e o descanso que usufruíra, não é coisa que se conte. O importante era saber que se tratava de material de primeira e demandava avaliação, conhecer o preço inicial. Custara caro, muito caro: cabeças de gado, um eito de terra, fora as sementes híbridas de pasto das quais era pioneiro. Não as daria por pouco. Coisa boa, resmungou entre dentes, olhos perdido para dentro, me chegou em primeira mão. Lhe afianço: não tinha uso nenhum, a formei lentamente, dentro dos ditames da necessidade e, é claro, do retorno do capital investido. O coronel Leôncio terminou a fala batendo no taco das botas num cacoete que apenas os da casa sabiam denotar nervosismo. Os resultados bem vejo, respondeu o visitante, nas modernidades de sua estância, nos seus setenta anos rijos, no cheiro que vem da cozinha e até nessa erva uruguaia que nunca tinha provado. Excelente, diga-se de passagem. Tem gosto de sangue e fogo derramado no pampa pelos dois lados. O mais velho, dono da cuia, cevou o mate com compridas e aromáticas folhas de capim cidró recém colhido no quintal. Traziam no cerne o doce cheiro do mel da terra. Demorava-se no feito pensando nos benefícios, tão gratos, que vendia agora. Uma saudade prematura lhe trouxe um turvejar dos olhos. Reclamou da fuligem do fogão de lenha que chegara à varanda. Pigarreou, era entrado na idade. Coisa de guasca que não se mostra, coisa do Rio Grande. _ Que lhe posso dizer, Coronel Atelfio? O único motivo que me leva a lhe entregar a menina de meus olhos é a velhice e o que a carcome. Se achega sem pedir licença, me tolhendo o movimento e a prontidão. A cabrita é jovem, tem veias grossas. No más, nada tenho a reclamar. Marialva, esposa do dono da casa, entra com pratos de pé-de-moleque e rapaduras de leite. Que tão bem adoçam o chimarrão amargo que circula no sangue gaúcho. É uma mulher, percebe-se pelo cheiro de flor. Não precisa fazer trejeitos de quadris para os homens respirarem fundo e sentirem-se vivos. Atelfio examina-a de olhos disfarçados: sopesa os peitos, arredonda-se nas nádegas. Avalia o entre-pernas e, com cumprimento cavalheiro, lhe acena las buenas. Sem levantar-se. A senhora não é tão jovem, os quarenta anos a adornam, puseram brilho pela postura do pescoço e das marcas suaves em torno da boca generosa e cortante. De onde as palavras não saem audíveis, mas ferem no silêncio. A lavanda de suas saias alivia por onde passa. O útero, imparido, espera a semente. Faz-se necessária constrição. O “jovem” ajeitou o lenço vermelho, amarrado em laço gaudério, último marco de seus desatinos, dava tempo ao seu interlocutor se refazer de uma emoção que não deveria ser percebida. _ Me dê espaço para uma boa mijada, Coronel. O mate é forte barbaridade. Levanta-se atrás da fêmea. Segue seus rastros. _ Pois é certo que vá. Sabia muito bem o que estava falando. O alívio da ausência é um ar frio de minuano que varre a varanda abrindo pulmões e arrepiando a pele. O ar vem do Uruguai, galopando, lança em riste. Vem da Argentina, argenta subitus, trás na alma o gosto cortante da guerra e da solidão. Leôncio aspira fundo. Geme. Retorna a uma primavera terminal. Nessa noite o senhor da casa cobriu sua mulher como nunca antes. Ela dormiu em paz. A tratativa é lenta, como se caminha no pampa. As tardes se alongam e os homens enchem suas bexigas acostumadas à água amarga que sai da bomba. Luta e guerra. Rio Grande. De alguma forma tudo deve chegar ao fim. Felizmente ou... quem sabe? Quem sabe o cancro se recolhe ao casulo? Quem sabe a idade não rói os ossos? Quem sabe um cavalo mouro... Quem sabe apenas curva e não... Quem sabe? - Coronel, tudo que precisava saber já está sabido, me cabe lhe dar a resposta. – A voz é firme, a mão é dura, as bombachas são largas e as botas cheiram a gordura nova. A meninota da cozinha entrou, apertou as mãos, enrolou a barra da saia entre os dedos. Quem sabe rapadura? Quem sabe pão de aipim? Bons-bocados? Arcanjos? - Saia, saia que não queremos nada! – o dono da casa não pode mais disfarçar o nervosismo. Chegou a hora. Quer realmente fechar o negócio, ou melhor, seria morrer com ele? – Pois sim, Coronel Atelfio, é esperado que se manifeste. - Aceito! A chaleira tomba, água quente espalha-se pelo chão em meio à fumaceira. Os dois homens apertam-se as mãos e batem nas costas um do outro. O contrato está assinado. O vendedor sorri, a pele curtida pelo sol e pelo Minuano parece fosca e a boca logo volta a fechar-se contrita. O comprador arruma as costas arredondadas pelo abandono sobre o cavalo e penteia com os dedos os bigodes fartos que parecem ter escurecido nos últimos dias, não se vê mais as pontas brancas amareladas de fumo. - Só nos falta legalizar a venda. Como se fará isso? - Não se preocupe, amanhã mesmo chamo o advogado e encaminho a separação, depois o senhor pode casar de papel passado, que é minha única exigência. Isso sacramenta a empreitada. Não pretendo reter nem sequer a minoria de minhas ações. Vana Comissoli

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

ADEUS ANO NOVO, FELIZ ANO VELHO

9... Ana Lúcia Eu nasci como todo mundo, ou talvez um pouco melhor por que nasci dentro de um hospital, com uma mãe me desejando. Sabendo que fora daquele local acético e anônimo, haveria calor humano com todos os seus erros que, sabia, viriam sobre mim. Ainda assim, eu berrei. Berrei para viver e por que isso dá um medo danado. Teria que enfrentar vestibular concorrido e deixar metade da vida sob um trabalho qualquer, se quisesse ter a enormidade de coisas que o mercado me ofereceria e eu nem sabia se as desejava de verdade. Metade de mim seria eu, a outra metade seria comercial de televisão. Danielson Nasci meio a contragosto, nem sei se parido ou cuspido dentro de uma ambulância que engasgou no meio do caminho bem na hora que pus o nariz no mundo. O paramédico fazia seu primeiro parto e suava em bicas enquanto os berros de minha mãe encobriam os meus. Não é mole entrar em trabalho de parto neste dia miserável quando todos estão enchendo a cara e se mora pendurado num morro qualquer de uma cidade qualquer do Brasil. Logo de cara meinha mãe carimbou meu nome: o pai era Nelson e ela Danira, o resultado foi esse nome meio americano que achei legal. Afinal só eu continuei berrando e me tornei a sirene da ambulância, já que ela não possuía uma. Antevia os pés no chão roçando a água de esgoto que sempre corre em algum canto de meu “bairro”. Enxergava as janelas basculantes da FEBEM, ou de outra instituição do gênero onde as basculantes substituem grades. Yasmin Não sei se nasci ou simplesmente abri a porta e entrei no mundo. Foi suave e tranquilo, passei de uma água morna para outra até ter condições de chorar delicadamente para meus pulmões aprenderem e se encher e esvaziar. Meu pai distribuiu aos amigos “puros” vindos de Cuba com todos os carimbos da procedência. Brindaram no apartamento com minha mãe, depois de ter sido maquiada para as visitas, com Veuve Clicquot Rosé. Eu era uma menina. Quase não chorei depois disso. Babás diuturnas me embalavam, lençóis de algodão egípcio não me espetavam e um enorme quarto com brinquedos que não cheguei a conhecer por inteiro, me admirava. 8... Ana Lúcia Subi em árvores, tomei banho de sanga, comi chocolate e esperei Papai Noel. Doces lembranças de bolos de aniversário com glacê colorido e meu nome escrito com caramelos. Joguei bolita, pulei sapata, lá no bem sul da minha terra. Tirei férias, pulei ondas, fui de castigo, levei palmada. Usei conga e chorei por uma boneca que andasse, o salário não alcançou e ganhei uma que sentava. Nem percebi que logo seria uma menininha e a escola do bairro para mim se abriria. Matemática contada em pauzinho de picolé, as letras se dando as mãos no quadro verde, desenhos coloridos pendurados e festa de São João me vestindo de prenda com fitas nos cabelos. Ai, bota aqui, ai bota ali o seu pezinho, me levanto ao êxtase em cima do palco improvisado. Danielson Berrei de fome, tive ranho, apanhei de cinta. Aprendi a andar levando roupa na casa da patroa de minha mãe. Do meu pai não lembro a cara, na primeira cólica que tive se sumiu na esquina, trocando as pernas depois de dar uma biaba bonita na cara de minha mãe que não sabia fazer outra coisa a não ser colocar berrão no mundo. Quando saía da vila, via os meninos indo para a escola enquanto eu soltava pandorga com cerol. Depois que foi avisada que se eu não fosse, perderia o salário família, minha mãe me matriculou no grupo escolar da esquina. Dia sim tinha aula, dia não a professora ficava doente e não aparecia. Dia não eu ia à aula, dia sim, eu não ia, mas na hora da merenda eu não perdia a fila. Yasmin Nunca vi uma vaca, férias no campo até que teve, mas eram resorts com cisnes e pôneis diariamente escovados. Meu quintal foi a Disneylândia e meus chocolates eram suíços. Os carrinhos de brinquedo eram movidos à pilha ou então com motor de verdade que eu dirigia pelo jardim. Aprendi inglês junto com português, bati na empregada e joguei copos no chão quando o suco não agradava. Nunca conheci a palavra Não. Comi carpaccio, salmão e cogumelos no desjejum. Tive babá eletrônica e luzes estrobocópicas para me trazerem sono de sonhos dourados, som estereofônico com cantigas de ninar. Tive aula de natação quando ainda não sabia falar, fiz teatro infantil, aprendi golfe com meu tio. Viajei para a Suécia sem saber que o mundo era redondo, fui à Tailândia aprender dança exótica. Esquiei nos Alpes quando era inverno e me bronzeei na Riviera no tempo quente. Não fui à escola antes de estar alfabetizada, ela que veio a mim cheia de livros coloridos e professores de todos os matizes. Andei de ônibus de curiosa enquanto meu chofer seguia atrás e minha babá me segurava pela mão. Meu pai era um empresário que todos chamavam de doutor e minha mãe era alguma coisa entre Eu sou e Sou eu. 7... Ana Lúcia Ai, que tempo de enormes sofrimentos e imensas felicidades! O primeiro sutiã, primeiro batom rosa-pele, meias de nylon, festa da escola, risinhos, frisson e contos românticos maravilhosos. O sonho do amor dourado que durava uma ou duas semanas fazendo meu coração pular no prazer de um olhar, ou lágrimas galoparem de meus olhos ao vê-lo, tão lindo, sorrindo para outra menina. O primeiro copo de vinho escondido, gosto ruim, meio amargo e tão chic de se beber. O ciúme e inveja visceral do tamanho dos seios de minha irmã mais velha. Os fantásticos pelos não aparecerão nunca para anunciar que fiquei mocinha? Ai, ele pegou na minha mão na sessão da tarde do cinema e as imagens se embaralharam na tela sendo minha a face da mocinha e ele se derretendo de amor era o galã que a amaria para sempre num terno e fabuloso beijo. Briga e bateção de pé, meus pais não entendem nada e implicam com tudo. Preciso dos meus 18 anos, só assim poderei fazer o que quero sem esta investigação ridícula. Não sou mais criança! Danielson Só me lembro que meu pinto ficou exigente e bater punheta virou uma gozada meio sem graça. Comer a Miquele foi um ato de coragem e tanto. Passei a ser respeitado e não me chamavam mais de rosca entupida. Fiquei macho homem. Passava uma novela na TV, minha mãe é louca por elas e depois se debruça em cima do arame da cerca inventada e fica falando dos fulanos da babaquice, como se fossem seus vizinhos de verdade. Algum dia moraria no mais esculhambado barraco de novela que sempre seria uma casa de bodoso perto da nossa? O que me deixava puto da cara era ver os mauricinhos troxas tendo ataque de bichice por que estavam na tal adolescência. Minha única dúvida e das muito importantes era saber que trampo eu escolheria: trabalhar no roubo ou no tráfico? Já ganhava uma grana nada fraca como avião, mas tráfico é aquilo: ou se morre ou se empedra. Não queria morrer cedo, deixar as tchutchuca sem derrubar é um desperdício. Empedrar deixa o cara sequelado, quer se goste ou não, dá que se perde a capacidade de mando. Houve uma briga com o Zé Foguinho. Eu já estava meio mamado e ele veio mexer com a mina. Me quebrou um dente, mas eu quebrei o nariz dele. Foi aí que fiquei homem e nunca mais deixei de ser. Yasmin Minha primeira bolsa Louis Vuitton não foi tudo aquilo que eu esperava, achei mais interessante ir à Paris com minhas primas. Visitamos a cabine do piloto por que era um e eu tinha verificado a mercadoria ainda no aeroporto. Chega-se à conclusão que homens mais velhos também não são aquilo tudo. Ficou nos tratando como se fôssemos débeis mentais que nunca tinham entrado num avião. Ridículo, nem me lembro de minha primeira viagem aérea, acho que ainda era de colo. Já a apresentação à sociedade foi sensacional. Adoro sair na página dos socialytes, é preciso pensar na projeção no mundo e eu fotografava muito bem. Festas e festas uma atrás da outra, charme e refinamento de primeira linha. Mamãe queria ir à New York comprar meus vestidos, achei um horror, sem dúvida a Itália e a França seriam muito mais instrutivas. Um Versace, nada mais e nada menos. Naturalmente houve desprazeres, há muito stress para nos mantermos realmente atualizadas e não correr o risco, “nem morta”, de ser vista duas horríveis vezes com o mesmo vestido onde as pessoas se repetiriam. As inquietações da adolescência me massacraram. Como parecer mais velha, escolher a maquiagem, o cabeleireiro certo, tudo isso destrói qualquer astral. Saí-me bem e atravessei heroicamente a fase. 6... Ana Lúcia Já pensava que era adulta, a doce ilusão dos anos verdes. Só vim a saber quando não eram mais verdes e sim um pouco amarelados, arranhados e surpresos. A escolha da faculdade a cursar foi um dilema de consideráveis proporções. Ou faria a felicidade de meu pai caminhando com ele pelos degraus desiguais da Engenharia, ou enveredava pelas letras por caminhos trincados, de chão batido e campos iluminados. Ele percebeu minhas dúvidas e me libertou. Como precisaria ser, consegui passar numa Federal e todos comemoramos entusiasticamente. Agora era levar muito a sério e me tornar uma profissional respeitada, já sabendo que apenas o curso não bastaria. Minha escolha necessariamente me levava a pós-graduações se eu quisesse me sustentar razoavelmente bem. Tinha tido os namoricos da meninice, cheios de perfumadas flores secas entre páginas, agora eu conheci o primeiro assustador homem da minha vida que eu não chamaria de pai. Não que o sexo fosse tabu em minha família, ou houvesse mística sobre ele, eu que não saberia dizer exatamente o que pensava do assunto e entrei tateando e insegura. O tempo passa e as laranjas se acomodam dentro da carroça, foi assim este período. Danielson O tráfico se mostrou mais fácil, mais ágil e mais rentável, enveredei pela trilha com revolver na cinta e um olho aberto dia e noite. Estava determinado a me tornar um cabeça, um patrão e não pouparia esforços, nem vidas, se preciso fosse. É uma luta constante e cheia de imprevistos, sendo que a polícia é o menor dos problemas. Se eu morresse cedo, teria que viver intensamente para não cair comendo formiga sem ter experimentado o que a vida me negara e eu tivera que conquistar a ferro e fogo. Se eu fosse preso, ao sair teria que lutar pelo meu espaço já certamente ocupado. É preciso ser muito forte e muito capitão para manter, dentro da cadeia, a mesma mão dura. Os dias se tornaram iguais e as noites se engoliam umas as outras. Havia o refrigério de muita mulher se pendurando no pescoço e o prazer descomunal de ser respeitado. Me tornei, com esforço, não foi de graça não, o Dani 38. Atravessei a pior fase me cagando todo, mas preso não fui e depois de certo estágio, a gente sabe que não pega mais nada. O respeito, o dinheiro e o medo, fazem uma boa escolta. Yasmin Queria estudar em Yale ou Harvard, mas balançava pela elegância de estudar na Sorbonne ou na Suíça. Qual área não era muito importante, não faria uso mesmo, só era inconcebível não ter um título legítimo. Resolvi estudar em todas, sairia falando várias línguas e isso ajudaria bastante nas viagens. Quem sabe a Alemanha teria alguma coisa que me levasse para lá? Não me preocupava nem um pouco com o tempo, eu era imune a ele, os cirurgiões estão fazendo milagre com o estrago que faz em nosso corpo e eu era extremamente cuidadosa. Alimentação perfeita, apenas os desvios dos jantares com seus foie gras e trufas indispensáveis. Uma verdadeira celebridade sabe que deve se render às iguarias, mesmo que vomite no banheiro trancado para prevenir quilos desconfortáveis. É sempre de bom tom caber esplendorosamente num biquíni branco que não é para qualquer uma. A cocaína já estava na moda e fazia parte do estilo de vida de uma pessoa de destaque, eu era inteligente e nunca me deixei fascinar, um brilho em noites de festa e depois a mais perfeita contenção. Tudo equilibrado e dentro dos moldes da fina educação que eu honrava. Foi divertido e eu tinha a estampa perfeita depois de pequenos reparos. 5... Ana Lúcia A maternidade me encheu de orgulho e trabalho, mas me deu muitas compensações: filhos engraçadinhos e saudáveis, como se espera de um casamento equilibrado onde as rusgas aparecem para dar revigorada na rotina de trabalho, casa, supermercado, escola das crianças, reuniões e finais de semana tranquilos. Eu aprendia sem pensar muito no que realmente era ser adulto, me saía bem e não poderia dizer que minha vida não era plena. Meu marido era tão equilibrado quanto eu e buscávamos os mesmos objetivos, em dois anos de casados conseguimos comprar uma boa casa, onde as crianças teriam espaço, quintal e solidez. Não emburreci por me tornar uma mãe devotada e esposa companheira, nunca parei de ler e o fazia com gosto, tinha uma coluna no jornal do bairro que me abria gostosas portas de bate papo. Era uma pessoa feliz e realizada. Danielson Quando se faz a escolha certa e muito cedo, tudo gira lubrificado, não precisava me importar com o tempo, a idade, isso não existe em meu mundo, apenas acrescenta mais facilidades e aumenta o prestígio. Nada precisava mudar de um ano para outro, apenas as festas do 31 de dezembro se tornavam mais generosas e embaladas. Não há o que dizer sobre o que se repete. Yasmin É meio cansativo casar, várias vezes é mais ainda, e ao mesmo tempo bastante divertido. Não há razão alguma para ficarmos presos a uma mesma pessoa eternamente, todos sabem que casamento só é bom no início e depois, saciada a fome, nosso apetite se refina para coisas cada vez melhores. Meu pai morreu e eu ainda estava na Europa estudando. Foi uma pena ter que deixar tudo e voltar ao Brasil para ir a enterro, mas meu pai merecia esta delicadeza. Não perdi muito, fiz as honras fúnebres e retornei, ainda tinha uns dois anos de estudos pela frente. Foi nesse tempo que conheci o Guido, os italianos são bons na arte da conquista e eu queria ser uma pessoa do mundo, portanto começar pela Itália ou França não faria muita diferença, sabia que faria escala em outras nacionalidades. Não nasci para pajear homem, eles sim, deveriam me render todas as homenagens que uma mulher de classe merece. Se não o fizessem... A fila anda. É bom ser uma mulher madura e segura de si. Consciente do que veio fazer na vida e tirar o máximo proveito de todas as condições oferecidas. 4... Ana Lúcia Há acontecimentos que não se explicam e nunca saberemos como de fato, se concretizaram. Foi acaso, eu diria, se minha amiga mais chegada não andasse lendo umas coisas instigantes sobre mundos paralelos, inconsciente coletivo e continuação da vida depois da vida. Aquela mulher deslumbrante, que me deu vontade de me enfiar num buraco por que fiquei a coisa mais insossa do universo, freou o tremendo carro quase encostando em mim. Eu tremia feito vara verde, foi desatenção minha ou dela? Assegurou-me que atravessei a rua sem olhar para nada e, sinceramente, não me lembro. Devia ser muito culta e saber bastante sobre leis, eu também sabia, mas na hora me deu branco e só queria voltar correndo para casa. Ela não deixou. Fez questão de me levar a uma clínica de sua propriedade, onde passei umas três horas em observação, embora nada tivesse me acontecido. Acho que foi assim que tudo começou neste fim de ano que deve ser um dos últimos que verei. Alguma coisa, acredito em milagres, destravou aquela brilhante, alta, perfeita em detalhes, mulher. Ela começou a falar e falei também tudo que os ciclos de nossas vidas tinham feito conosco desde que nascemos. Não posso entender como nos lembramos tão bem de todos os pormenores e continuamos contando dentro do carro quando ela me levava para casa. Fui me dando conta de minha vida tão comum e tão maravilhosa. Me dando conta que não precisa haver nada especial para se fazer se estivermos fazendo verdadeiramente. Yasmin, esse era seu nome, foi dizendo do imenso vazio que havia dentro de suas grifes fantástica e de como sua imensa casa não sorria para crianças que teriam estragado seu ventre liso e firme como aos vinte anos. Falou sobre o medo incomensurável que vinha tendo neste fim de ano que talvez fosse um dos últimos de sua vida. Danielson Estava enfastiado. Conseguira tudo que queria e agora esta falta de mudança, esse igual a tudo me cansava e dava uma monotonia sem paralelo. Lembrei-me de como e quando nasci, cada dia da minha vida e do que acabei não fazendo. A vida tem dessas desgraças, ou é de um jeito ou de outro, não existe a menor possibilidade de refazer, de apagar e tentar a maneira que deixamos de lado. Acho que foi a primeira vez que realmente pensei num encadeamento de ideias e de como não ter feito antes me deixou sem escolhas para o que seria, a partir de agora, que deveria estar vivendo um dos últimos finais de ano de minha triunfante vida. Talvez se eu tivesse escolhido apenas ser ladrão, houvesse possibilidade de ter sido preso e, encerrado. Talvez eu tivesse aprendido a pensar, já que nada mais existe na prisão além de pensar e se proteger para não ser morto pelo azar de estar junto com alguém do bando inimigo. Talvez eu ainda pudesse morrer em paz se saísse maluco e só, com uma arma na mão para assaltar alguém. Yasmin A criatura apareceu nem sei de onde, parecia mais caída do céu e freei a tempo de não transformá-la em mistura de asfalto. Não sei o que me deu por que pensei em consequências, estes detalhes tão abaixo de minha categoria, e a coloquei no carro indo muito devagar para uma das clínicas que herdara de meu pai. Os médicos, para minha proteção, acharam por bem mantê-la algum tempo em observação e não havia nada que eu pudesse fazer. Ou talvez houvesse se eu tivesse querido deixa-la ali sozinha e voltar para minha confortável casa. Fiquei. Acho que Ana Lúcia, esse era seu nome, estava meio zonza do susto e começou a me contar sua vidinha banal, tão sem graça e estéril perto da minha. Quando vi, pontuava sua fala com os paralelos, de certa forma mágicos, com os quais minha vida fora brindada. Isso me deu uma angústia que não sei se meu analista teria entendido. Me conhecia desde os seis anos e sabia que eu era a realização absoluta. Acho que pensei de olhos lúcidos, pela primeira vez e enxerguei todo o absurdo vazio e a flacidez de minha alma desfocada. Precisaria dessa mulher para poder compreender o que é ter muito pouco e vastamente ao mesmo tempo para poder viver alguma coisa consistente neste fim de ano esquisito. Decidi que não beberia meu champanhe francês favorito e faria, talvez, uma festa familiar com outra família que não fosse a minha. Os meus não entenderiam nada. 3... Ana Lúcia Saímos da clínica e parecia que tínhamos nos conhecido desde sempre, totalmente entregues a uma conversa sem fim, assemelhada à dança e onde a música era nossa voz e o tom, a nossa experiência neste mundo tão passageiro. Quando entramos naquela rua já estava escuro e não havia ninguém chegando ou saindo, um varrer de vento levara todos para dentro de casa. Não sei por que me arrepiei de medo e soube que todos os demais fins de ano que pudesse ter seriam resolvidos nesta noite e nesta rua que não conhecia. O carro entrou pela contramão com o motorista pisando fundo no acelerador. Yasmin segurou o volante e freou. O outro fez um “cavalo de pau” deixando seu veículo atravessado. O homem saiu com um revolver na mão e eu sabia que era um 38, jamais tinha visto uma arma antes, fora dos filmes e antevi meu último fim de ano. Danielson Foi mesmo sensacional manobrar de forma que o carro se atravessasse na rua e trancasse a passagem das duas mulheres escolhidas para alvo. Saí gritando, é um assalto, é um assalto, bem como vira nos noticiários da televisão. Não, acho que vi em alguma novela de minha mãe que se sentava ao meu lado vestida com sua roupa funerária. Era seda pura, não enterraria minha velha com os trapos que vivera toda a vida. Isso não! Eu a queria bela quando fosse enfrentar o tal São Pedro que se diz porteiro do céu. Ele a vendo assim, cheirosa e penteada, com vestido florido, talvez acreditasse que era uma dama e que educara muito bem o filho que a amara tanto a ponto de não poupar despesas com o caixão e com vinte coroas de flores desfalecidas. Yasmin Senti, ao ver o carro na contramão a toda velocidade, que nosso momento chegara e nem sei como tive presença de espírito em frear ao mesmo tempo em que firmava a direção. O homem saiu gritando, é assalto, é assalto, com um revolver imenso, daqueles que os tiras usam nos filmes de ação e nem era uma bela arma de cabo de madrepérola que me mataria. Foi o que consegui pensar. 2... Ana Lúcia Não sabia mais se estava acontecendo de verdade ou se era um pesadelo. Tudo era surreal demais e lembrei de meus filhos que estariam se enfeitando para a ceia, na certeza que me esmeraria na comida, fazendo parecer que era um banquete. Lembrei-me dos abraços e beijos que trocávamos nesta hora. Meu marido, embora aéreo e distante há dois anos, seria tratado com o mesmo carinho de antes do Alzheimer. Fingiríamos que ele estava entre nós por que sabíamos que seu espírito gostaria disso e se esqueceria do corpo abatido. Logo ouviria o estampido e saberia que acabou o mundo e tudo que eu pudesse ter vivido nele. Danielson Elas deveriam ter dinheiro, talvez joias por que o carro era de madame e a loira tinha um jeito de capa de revista. Seria um bom começo para minha nova carreira e me divertiria muito presenteando minha vagabunda com aquele colar que parecia de verdade. Fui caminhando firme e grosso, bem macho mesmo, em direção ao carro. Foi quando ouvi o sino de alguma maldita igreja e vi minha mãe descer do carro se postando ao meu lado com um chinelo na mão. Nunca tive medo do chinelo dela, eu tinha pernas muito melhores e estava grande, ela não poderia me acertar nem mesmo as cintadas. Comecei a contar as badaladas e pareciam ser contagem regressiva de tempos, talvez minutos, os últimos. Yasmin O homem parou alguns metros à nossa frente, parecia resmungar, ou falar com alguém invisível e, aos poucos levantou a arma para a própria cabeça. Eu não queria morrer, mas, apesar de tudo, não queria que ele morresse e, me lembrei de alguma coisa meio solta e esquecida dentro da cabeça. Talvez um peru, ou pato assado que tinha um aroma de forno, podia ser um peixe ou, mais provável, lagosta, que comi num réveillon largado lá nos anos atrasados e mortos que não voltariam mais. 1! Os três lembraram ao mesmo tempo que tinham celulares. As mulheres ainda tiveram um flash de medo e dúvida. Como poderiam ligar sem que o homem percebesse? Mas exatamente pelo medo e dúvida, não se deram ao trabalho de qualquer mistificação e teclaram o 190, sem hesitação. Nem podiam crer que o homem também ligava e dava notícias de um assalto à telefonista, insistindo muito que daria tempo de evitar se viessem logo. As duas faziam a mesma coisa simultaneamente, como coral ensaiado. Passados alguns minutos ouviram as sirenes, dava a impressão que tinham mandado um exército inteiro pelo estridente e ecoante som. Os três se olharam estupidamente primeiro e depois de uma forma estranhamente fraterna como se fossem velhos conhecidos. A apresentação foi muito rápida, feita enquanto Danielson jogava o revolver numa lixeira, Yasmin soltava os cabelos e os balançava desordenadamente e Ana Lúcia atirava para um canto da rua o maldito relógio que a aprisionara pelos anos todos e mais lembrado ainda nas últimas noites do ano. Cada um teclou o número de alguém ou ninguém que os esperava para a ceia, avisando que estavam presos no trânsito, mas chegariam a tempo, afinal ainda faltavam 4 horas para a meia noite. Entraram rapidamente nos automóveis fazendo sinais de entendimento. Duas ruas depois se sentavam num bar e tomavam guaraná em copo tipo americano, não muito limpo. Apenas Danielson se lembrou de passar na borda um guardanapo de papel para tirar uma mancha de batom que alguma mulher deixara de lembrança e a garçonete distraída não lavara muito bem. O marido não entendia nada mesmo e ficou sem entender, mas os filhos de Ana Lúcia ficaram surpresos ao saber que a mãe tinha reencontrado, como por milagre, velhos amigos de infância que vieram para a ceia daquele ano que seria o zero de suas vidas. Todos os outros anos foram borrões apagados e não voltariam mais, lembrariam deles como uma coisa boa que os empurrara para esta noite, onde o que passou será um aprendizado para que não haja mais finais de ano iguais aos que já foram. Nunca mais ano novo para demarcar coisa alguma, apenas anos que se fariam diariamente ao longo das novas horas que já são velhas depois de um segundo. Assim como eles. Era uma noite quente de verão, com estrelas cintilando forte. Uma delas, como olhos que piscam, tremelicou sua luz e eu pensei que estrelas bem podem ser os olhos de Deus. Vana Comissoli