segunda-feira, 14 de outubro de 2013

ABANDONA-ME

Ao meu amigo anjo, Arthur que das estrelas está me olhando junto com sua turma que não toca harpa, mas um bom rock da pesada. Briga comigo! Estás aí parado, com esse sorriso feito de silêncio, tão plácido e tranquilo. Apenas sorris, sem me ver. Teus olhos mudos, como que enxergando minha alma que eu não conheço. Esqueces o tormento do meu pensar. Levanta e vem brigar, que eu estou armada até os dentes, vestida de amazona e montada no meu cavalo castrado. Sei, não vens de covarde que és! Quantas vezes me botei na tua cara riscando de sangue essa tua felicidade imensa em não fazer nada, só para ver se te sacudia um pouco. Ah, que te odeio porque não lavaste a louça e dormiste como um bebê enquanto eu precisava correr, pensar e sentir dor. Ah, anseio que morras, pois conheces a vida e a aceitas, enquanto eu me debato na incompreensão de ser gente. Pareces surdo. Não ouves o meu delírio? Não respondas, bem sei que ouves. Tu foste o único a compreender, vi isso no lago silencioso do teu olhar. Tu me mostraste minha mágoa e minha raiva, permitindo que elas tomassem conta de ti e gritando comigo. Ficando tão terrível que me obrigaste a calar em choro desesperado enquanto me batias. Tu fizeste o que nenhum amor fez comigo. Trocaste de lugar: tu eras eu, e eu... Eu nunca consegui ser tu. Fizeste isso para me dar alguns instantes de atormentada paz, a única que me era possível. Roubaste minha culpa e minha dor para que eu pudesse dormir. Nunca me disseste nada, fizeste em silêncio, embora teu silêncio soasse em mim como uma orquestra inteira executando um “Aprendiz de Feiticeiro”, crescendo em cada pesadelo meu. Fizesse esse gritante silêncio para não me ofender. Sabíamos nós, que eu, a grande ofendida, não me entregaria jamais ao descanso proporcionado pela partilha. Eu precisava seguir sozinha meu caminho de tortuosa agonia. Não sorrias assim, como quem foi pego roubando. Como eu podia dizer que sabia e estragar toda a validade do nosso jogo, do nosso brinquedo com a verdade? Precisávamos fingir por minha causa, por mim, que nunca soube viver em paz. Sei que me fingia de burra e dizias que eu não era, para em seguida me xingar de estúpida, reforçando o meu teatro. Assim eu poderia continuar gritando e quebrando cinzeiros que se espatifavam no chão. Lembras? Eu dizia para quem quisesse me ouvir que, não eras um homem e teu corpo não despertava em mim nada além da obrigação. Calavas, como sempre, deixando que o veneno saísse pela minha boca para não me matar por dentro. Deixando, porque fingias dormir enquanto eu acariciava teus cabelos. Nem te mexias e assim, o carinho saía pelas minhas mãos e não se estrangulava dentro de meu peito. Eu berrava que não era louca. Tu que era impossível de se conviver. Tua voz, vinda de paciência imensa, me dizia: - sim, és louca! Em seguida me abraçavas chorando. Às vezes, quando eu podia ouvir, me ensinavas que louca era minha mãe, que eu não fosse lá, pois voltaria igual a ela, pior ainda. Eu, no entanto, precisava ir. De que outra maneira alimentaria a tortura da minha infância, do estupro que meu pai me fez porque eu acompanhava minha mãe em fugas nas tardes de sol e chamava o amante dela de tio, abraçando-o porquê dava-me caramelos. Balas de soda, tão boas de ferver na língua! Não sorrias assim como se isso fosse brinquedo e não importasse nada na sua magnífica importância, porque bem sei que não importa. Tu me mostraste isso na constância da tua presença. Eu podia te odiar porque começaste a beber e tomavas um porre a cada fim-de-semana. Bem sabes como odeio que bebas por mim, para poder continuar calado o resto da semana. Abandona-me! Não te suporto porque podes ter mil mulheres e delas foges apenas para me atormentar com essa fidelidade gosmenta e imprescindível. Odeio-te porque me engravidaste e eu tive que carregar a barriga sozinha, enquanto continuavas a esperar. Esperar o que? Se apenas eu podia aguardar uma mudança nessa tua passiva ansiedade por mim. E tem mais, o filho, amorosa ironia, teve a tua cara. Odeio-te porque não me ferves o sangue e não me fazes rolar pelo chão com as minhas pernas, sempre tão apertadas, forçadamente abertas e meu corpo fechado por essa vez, exposto. Quero que morras, porque tens cuidado comigo e finges que acreditas na minha falta de tesão enquanto me trepas com delícia e carinho. Por que não me machucas, não me viras de costas para me penetrar de horror? Não quero cozinhar e jogo as panelas no chão. Quebro os pratos em seguida. Então cozinhas - merda, como o fazes bem! - Sento-me à tua frente e mastigo com furioso prazer. Antes, porém, varreste os cacos, guardando os pedaços do meu jarro predileto. O primeiro a espatifar-se, para, numa madrugada qualquer, restaurá-lo. Mexe-te, homem, vê se trabalha, faz alguma coisa! Que me importa se o jornal fechou! Eu sei que a culpa é tua, és um frouxo e muitas vezes preciso bancar o teu cigarro. Enquanto isso desistes e recomeças sabendo que eu não posso parar, é a única maneira de poderes fazer tudo que te dá vontade. Dormes. Como dormes! Eu preciso levantar e viver um dia horrível, no entanto, as plantas só vicejam contigo, as minhas morrem, afogadas ou secas. Hoje nem sequer retrucas, resolveste não me acompanhar dessa vez, te fechas e eu que me dane. Aproveitarei para dizer que também te odeio porque todo mundo te acha sensacional com tuas ideias silenciosas e perfeitas, mesmo que apenas abanes a cabeça em concordância a alguma coisa dita. Olho-te e vejo o diabo que és apesar de tentares me iludir com tua aura de luz. Eu não vejo nada! Isso sim é loucura: ver o que ninguém percebe. Eu não entendo e só tenho a ti para odiar, por isso odeio o mundo inteiro. Agora subimos no carro. Claro que arrumaste mal a bagagem, não vejo bem onde, mas sei que, ou reorganizo tudo, ou ela virá abaixo. Eu começo com raiva a viagem e dirijo, já que faço isso melhor do que tu. Afinal chegamos. Dirigi tão bem que o carro ficou aos pedaços lá na estrada. Responde-me, responde por inteiro uma única vez, desfaz esse sorriso idiota e fala: - Por que tiveste que morrer bem agora? E só agora quando consigo entender tudo e não sorrirás mais para mim, que bem sabes, te amo tanto! O que ninguém vê, eu vejo: te sentas por sobre o teu corpo e teus mansos olhos são brasas vivas. Falas, te ouço tão bem como sempre. - Querida, mas foi só por isso que eu vivi! Vana Comissoli

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